STJ - Quinta Turma

HC 779.289-DF

Habeas Corpus

Relator: Reynaldo Soares da Fonseca

Julgamento: 22/11/2022

Publicação: 28/11/2022

STJ - Quinta Turma

HC 779.289-DF

Tese Jurídica Simplificada

As condutas de plantar maconha para fins medicinais e importar sementes para o plantio são materialmente atípicas, sendo possível expedir salvo-conduto, desde que comprovada a necessidade médica do tratamento.

Nossos Comentários

Lei de Drogas 

Para entendermos o raciocínio do Tribunal, primeiramente, precisamos analisar como ambas as condutas estão expressamente previstas na Lei, antes de partirmos para a decisão em si. 

PLANTIO

A conduta de plantar é tipificada no art. 33, §2º, sendo equiparada a tráfico de drogas.

Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.

§ 1º Nas mesmas penas incorre quem:

(...)

II - semeia, cultiva ou faz a colheita, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, de plantas que se constituam em matéria-prima para a preparação de drogas;

(...)

No entanto, quando o plantio é de pequena quantidade, destinado a consumo próprio, a lei dá um tratamento diferenciado à conduta, considerando-a plantio para consumo, não sujeito a penas restritivas de liberdade (art. 28, §1º).

Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:

I - advertência sobre os efeitos das drogas;

II - prestação de serviços à comunidade;

III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

§ 1º Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.

É a forma que a lei entendeu individualizar melhor a conduta, e adequá-la aos fins da própria legislação. Ao diferenciar do possuidor para consumo do possuidor para o tráfico, despenalizando a primeira conduta, a lei afasta o consumidor do ingresso precoce ao mundo do crime por meio da prisão. 

IMPORTAÇÃO

A sexta turma do STJ já considerava, desde 2020, que importar pequenas quantidades de semente de maconha não configurava tráfico de drogas (clique aqui para ver nossos comentários), já que a semente não traz consigo o princípio ativo da cannabis (THC). Agora, a novidade é que a Quinta Turma também aderiu a esse entendimento. 

USO MEDICINAL

O uso medicinal, desde que autorizado e regulamentado pela União, não é vedado pelo ordenamento brasileiro.

Vejamos o que diz a própria lei de drogas, no artigo 2º, parágrafo único:

Art. 2º Ficam proibidas, em todo o território nacional, as drogas, bem como o plantio, a cultura, a colheita e a exploração de vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas, ressalvada a hipótese de autorização legal ou regulamentar, bem como o que estabelece a Convenção de Viena, das Nações Unidas, sobre Substâncias Psicotrópicas, de 1971, a respeito de plantas de uso estritamente ritualístico-religioso.

Parágrafo único. Pode a União autorizar o plantio, a cultura e a colheita dos vegetais referidos no caput deste artigo, exclusivamente para fins medicinais ou científicos, em local e prazo predeterminados, mediante fiscalização, respeitadas as ressalvas supramencionadas.

Existe regulamentação sobre esse uso medicinal? Mais ou menos. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária até que tentou regulamentar, autorizando o uso medicinal de produtos à base de cannabis sativa para o uso de 18 fármacos diferentes. A agência classificou a maconha como planta medicinal também por meio de regulamento (RDC n. 130/2016) e incluiu medicamentos à base de canabidiol e THC que contenham até 30mg/ml de cada uma dessas substâncias na lista A3 da Portaria n. 344/1998. No entanto, não podemos afirmar que esses atos normativos regulamentam o uso medicinal da planta propriamente dita, mas que autorizam, em alguns pouquíssimos casos, o uso em alguns fármacos.

O Caso

Agora vamos entender o que o STJ efetivamente julgou, e o entendimento do Tribunal sobre as seguintes condutas:

  • Importar sementes de maconha para uso medicinal
  • Plantar maconha para uso medicinal

Para o STJ, a conduta de plantar, quando realizada para uso medicinal, não está amoldada no artigo 28, como a literalidade da lei preceitua. 

Também, para o Tribunal, a conduta de importar sementes não está amoldada no artigo 33 referente ao tráfico - como já entendia a 6ª turma desde 2020, entendimento este que se estende à 5ª turma. 

Por quê? 

Os crimes tipificados na Lei de Drogas são de perigo abstrato, sendo o bem jurídico tutelado por esses tipos penais a saúde pública. Segundo o Tribunal, essas condutas discutidas no caso concreto são materialmente atípicas, pois não violam a saúde pública.

Como sabemos, a tipicidade divide-se em: 

  1. Tipicidade formal: É quando a conduta se amolda ao preceito literal da norma. É violação da norma em sua literalidade. Um furto viola o patrimônio, pois subtrai coisa alheia móvel. 
  2. Tipicidade material: É a violação do bem jurídico que o tipo visa proteger. Um furto insignificante amolda-se à conduta do tipo (subtrair coisa alheia móvel), mas se não viola o patrimônio de forma significativa, não há tipicidade mateiral e a conduta deixa de ser ilícita. 

O Tribunal afirmou que além de as condutas referidas não violarem o bem jurídico "saúde pública" tutelado pela Lei de Drogas, pelo contrário, acaba violando-a ainda mais. Quem recorre à importação de sementes para plantar maconha e fazer uso da planta em razão de uma doença o faz como último recurso para amenizar sintomas de doenças que não conseguem ser curadas pelos fármacos que estão disponíveis no mercado. A omissão do Poder Público em regulamentar o uso para esse fim está violando o direito à saúde, desprotegendo a pessoa que busca essa terapia. Para todos os fins, segundo o Tribunal, diante de uma regulamentação aquém da necessária para resguardar esses casos de uso medicinal, é preciso considerar que existe uma regulamentação, porque não é proporcional nem razoável que se prenda uma pessoa que realizou essas condutas. 

Por isso, entenda a diferença: o STJ não aplicou as medidas despenalizadoras do consumo (art. 28) a essas condutas. O STJ considerou que, no caso concreto, as condutas referidas não configuram crime, por carência de tipicidade material. 

Isso servirá para todo mundo que alegar uso medicinal, indistintamente? Não. É preciso comprovar a imprescindibilidade, ou seja, da necessidade do uso.

Tese Jurídica Oficial

As condutas de plantar maconha para fins medicinais e importar sementes para o plantio não preenchem a tipicidade material, motivo pelo qual se faz possível a expedição de salvo-conduto, desde que comprovada a necessidade médica do tratamento.

Resumo Oficial

O tema diz respeito ao direito fundamental à saúde, constante do art. 196 da Carta Magna, que, na hipótese, toca o direito penal, uma vez que o art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal, determina a repressão ao tráfico e ao consumo de substâncias entorpecentes e psicotrópicas, determinando que essas condutas sejam tipificadas como crime inafiançável e insuscetível de graça e de anistia.

Diante da determinação constitucional, foi editada mais recentemente a Lei n. 11.343/2006. Pela simples leitura da epígrafe da referida lei, constata-se que, a contrario sensu, ela não proíbe o uso devido e a produção autorizada. Dessa forma, consta do art. 2º, parágrafo único, que "pode a União autorizar o plantio, a cultura e a colheita dos vegetais referidos no caput deste artigo, exclusivamente para fins medicinais ou científicos, em local e prazo predeterminados, mediante fiscalização, respeitadas as ressalvas supramencionadas".

Os dispositivos da Lei de Drogas que tipificam os crimes, trazem um elemento normativo do tipo redigido nos seguintes termos: "sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar". Portanto, havendo autorização ou determinação legal ou regulamentar, não há se falar em crime, porquanto não estaria preenchido o elemento normativo do tipo. No entanto até o presente momento, não há qualquer regulamentação da matéria, o que tem ensejado inúmeros pedidos perante Poder Judiciário.

Diante da omissão estatal em regulamentar o plantio para uso medicinal da maconha, não é coerente que o mesmo Estado, que preza pela saúde da população e já reconhece os benefícios medicinais da cannabis sativa, condicione o uso da terapia canábica àqueles que possuem dinheiro para aquisição do medicamento, em regra importado, ou à burocracia de se buscar judicialmente seu custeio pela União.

Desde 2015, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária vem autorizando o uso medicinal de produtos à base de cannabis sativa, havendo, atualmente, autorização sanitária para o uso de 18 fármacos. De fato, a ANVISA classificou a maconha como planta medicinal (RDC n. 130/2016) e incluiu medicamentos à base de canabidiol e THC que contenham até 30mg/ml de cada uma dessas substâncias na lista A3 da Portaria n. 344/1998, de modo que a prescrição passou a ser autorizada por meio de Notificação de Receita A e de Termo de Consentimento Informado do Paciente.

Trazendo o exame da matéria mais especificamente para o direito penal, tem-se que o bem jurídico tutelado pela Lei de Drogas é a saúde pública, a qual não é prejudicada pelo uso medicinal da cannabis sativa. Dessa forma, ainda que eventualmente presente a tipicidade formal, não se revelaria presente a tipicidade material ou mesmo a tipicidade conglobante, haja vista ser do interesse do Estado, conforme anteriormente destacado, o cuidado com a saúde da população.

Dessa forma, apesar da ausência de regulamentação pela via administrativa, o que tornaria a conduta atípica formalmente - por ausência de elemento normativo do tipo -, tem-se que a conduta de plantar para fins medicinais não preenche a tipicidade material, motivo pelo qual se faz mister a expedição de salvo-conduto, desde que comprovada a necessidade médica do tratamento, evitando-se, assim, criminalizar pessoas que estão em busca do seu direito fundamental à saúde.

Quanto à importação das sementes para o plantio, tem-se que tanto o Supremo Tribunal Federal quanto o Superior Tribunal de Justiça sedimentaram o entendimento de que a conduta não tipifica os crimes da Lei de Drogas, porque tais sementes não contêm o princípio ativo inerente à cannabis sativa. Ficou assentado, outrossim, que a conduta não se ajustaria igualmente ao tipo penal de contrabando, em razão do princípio da insignificância.

Entretanto, considerado o potencial para tipificar o crime de contrabando, importante deixar consignado que, cuidando-se de importação de sementes para plantio com objetivo de uso medicinal, o salvo-conduto deve abarcar referida conduta, para que não haja restrição, por via transversa do direito à saúde.

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