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STJ - Primeira Seção

REsp 2.024.250-PR (IAC 16)

Recurso Especial

Relator: Regina Helena Costa

Julgamento: 13/11/2024

Publicação: 19/11/2024

STJ - Primeira Seção

REsp 2.024.250-PR (IAC 16)

Tese Jurídica Simplificada

1ª Tese: O cânhamo industrial (Hemp), que é um tipo de Cannabis com THC menor que 0,3%, não é considerado droga ilegal porque é insuficiente para produção de drogas, assim entendidas substâncias psicotrópicas capazes de causar dependência.

2ª Tese: O governo brasileiro deve controlar todas as variedades de Cannabis, incluindo o cânhamo industrial (Hemp). Como não existe atualmente, previsão legal e regulamentar que permita seu uso industrial para fins distintos dos medicinais ou farmacêuticos, o Judiciário não pode autorizar.

3ª Tese: As regras da ANVISA que proíbem importar sementes e cultivar a planta em domicílio não se aplicam ao cânhamo industrial - Hemp (com THC menor que 0,3%).

4ª Tese: Empresas podem receber autorização para plantar, cultivar, industrializar e vender cânhamo industrial, mas apenas para fins medicinais e/ou farmacêuticos. A ANVISA e a União têm 6 meses para regulamentar essas finalidades.

5ª Tese: A ANVISA e a União devem criar medidas para evitar o uso indevido das plantas e sementes e garantir a idoneidade das pessoas jurídicas habilitadas a exercerem tais atividades, sem prejuízo de outras medidas para preservar a segurança na cadeia produtiva e/ou comercial.

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Tese Jurídica Oficial

1ª Tese: Nos termos dos arts. 1º, parágrafo único, e 2º, caput, da Lei n. 11.343/2006 (Lei de Drogas), não pode ser considerado proscrito o cânhamo industrial (Hemp), variedade da Cannabis com teor de Tetrahidrocanabinol (THC) inferior a 0,3%, porquanto inapto à produção de drogas, assim entendidas substâncias psicotrópicas capazes de causar dependência;

2ª Tese: De acordo com a Convenção Única sobre Entorpecentes (Decreto n. 54.216/1964) e a Lei n. 11.343/2006 (Lei de Drogas), compete ao Estado brasileiro estabelecer a política pública atinente ao manejo e ao controle de todas as variedades da Cannabis, inclusive o cânhamo industrial (Hemp), não havendo, atualmente, previsão legal e regulamentar que autorize seu emprego para fins industriais distintos dos medicinais e/ou farmacêuticos, circunstância que impede a atuação do Poder Judiciário;

3ª Tese: À vista da disciplina normativa para os usos médicos e/ou farmacêuticos da Cannabis, as normas expedidas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA (Portaria SVS/MS n. 344/1998 e RDC n. 327/2019) proibindo a importação de sementes e o manejo doméstico da planta devem ser interpretadas de acordo com as disposições da Lei n. 11.343/2006, não alcançando, em consequência, a variedade descrita no item I (cânhamo industrial - Hemp), cujo teor de THC é inferior a 0,3%; 

4ª Tese: É lícita a concessão de autorização sanitária para plantio, cultivo, industrialização e comercialização do cânhamo industrial (Hemp) por pessoas jurídicas, para fins exclusivamente medicinais e/ou farmacêuticos atrelados à proteção do direito à saúde, observada a regulamentação a ser editada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA e pela União, no âmbito de suas respectivas atribuições, no prazo de 06 (seis) meses, contados da publicação deste acórdão; 

5ª Tese: Incumbe à Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA e à União, no exercício da discricionariedade administrativa, avaliar a adoção de diretrizes destinadas a obstar o desvio ou a destinação indevida das sementes e das plantas (e.g. rastreabilidade genética, restrição do cultivo a determinadas áreas, eventual necessidade de plantio indoor ou limitação quantitativa de produção nacional), bem como para garantir a idoneidade das pessoas jurídicas habilitadas a exercerem tais atividades (e.g. cadastramento prévio, regularidade fiscal/trabalhista, ausência de anotações criminais dos responsáveis técnicos/administrativos e demais empregados), sem prejuízo de outras medidas para preservar a segurança na respectiva cadeia produtiva e/ou comercial.

Resumo Oficial

Cinge-se a controvérsia em definir a possibilidade de concessão de Autorização Sanitária para importação e cultivo de variedades de Cannabis que, embora produzam Tetrahidrocanabinol (THC) em baixas concentrações, geram altos índices de Canabidiol (CBD) ou de outros Canabinoides, e podem ser utilizadas para a produção de medicamentos e demais subprodutos para usos exclusivamente medicinais, farmacêuticos ou industriais, à luz da Lei n. 11.343/2006, da Convenção Única sobre Entorpecentes (Decreto n. 54.216/1964), da Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas (Decreto n. 79.388/1977) e da Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas (Decreto n. 154/1991).

Ressalta-se que o cerne do debate repousa sobre a impugnação de atos secundários da ANVISA restringindo o plantio e o cultivo da Cannabis no território nacional, cuja análise, portanto, há de ser efetuada à vista da competência sanitária da agência, voltada a prevenir, a diminuir ou a eliminar riscos à saúde ou ao meio ambiente.

Alerta-se, ainda, que a questão em julgamento não versa sobre a descriminalização da maconha, tampouco sobre o cultivo de todas as variedades da planta e para quaisquer fins, não havendo, outrossim, nenhuma discussão sobre o uso recreativo da Cannabis.

Igualmente, não está em debate a possibilidade da sua importação e/ou cultivo domiciliar por pessoas físicas, ou, ainda, de empregos industriais diversos do farmacêutico, haja vista que tal hipótese escapa à disciplina dos atos regulamentares questionados, editados no exercício da competência sanitária da agência reguladora sobre atividades e ações medicinais e farmacológicas envolvendo a planta.

O cânhamo industrial (Hemp) e "maconha" são variedades genéticas distintas da Cannabis sativa L. Ambas contêm THC (Tetrahidrocanabinol), componente psicotrópico da Cannabis, responsável pelos efeitos eufóricos ou alterados da percepção, e CBD (Canabidiol), substância presente na planta e incapaz de gerar efeitos psicoativos, utilizada para fins farmacêuticos e medicinais.

Diferentemente da maconha, o cânhamo industrial não possui concentração de THC capaz de causar efeitos psicotrópicos (inferior a 0,3%), vale dizer, é inservível para produzir drogas, mas possui alto teor de CBD.

Pesquisas e estudos nacionais e internacionais indicam o potencial terapêutico ou comprovam a eficácia de derivados da Cannabis na atenuação de sintomas de inúmeras doenças e transtornos humanos, motivando diversos Estados da Federação a aprovarem leis autorizando a distribuição de medicamentos à base de substratos da planta nas respectivas redes públicas de saúde, notadamente em função do elevado custo desses produtos, decorrente, em boa medida, da necessidade de importação dos insumos para sua produção.

Os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, ao incorporar Convenções internacionais sobre a matéria, quais sejam, Convenção Única sobre Entorpecentes, de 1961 (Decreto n. 54.216/1964); Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas, de 1971 (Decreto n. 79.388/1977); e Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, de 1988 (Decreto n. 154/1991), não apontam nenhum impedimento para o cultivo controlado de cânhamo industrial em território nacional.

No que tange à legislação infraconstitucional diretamente envolvida na solução da controvérsia, tem-se a Lei n. 11.343/2006 ("Lei de Drogas") e seu regulamento, o Decreto n. 5.912/2006; assim como as Leis ns. 9.782/1999 e 10.711/2003, as quais estabelecem, respectivamente, as competências regulatórias da ANVISA e do Ministério da Agricultura e Pecuária sobre sementes e mudas.

Verifica-se que o art. 1º, parágrafo único, da Lei n. 11.343/2006 contempla norma penal em branco, que autoriza a Administração Pública, mediante o exercício de seu poder regulamentar, a especificar as substâncias ou produtos capazes de provocar dependência, complementando, assim, a definição de drogas encartada no seu texto.

Assim, no cenário atual, a ANVISA classifica a planta Cannabis e suas espécies como proscritas em virtude da existência de THC, independentemente do percentual presente da substância.

Entretanto, conforme doutrina, os efeitos psicoativos ou psicotrópicos causados pelo THC sobre o organismo humano despontam a partir de teores mais elevados da substância que aqueles verificados no Hemp, vale dizer, inferiores a 0,3%, referencial esse estabelecido desde 1976 para distinguir a taxonomia da maconha e do cânhamo. Efetivamente, considera-se 1% o nível mínimo de THC para que a substância seja capaz de produzir efeitos psicotrópicos, aspecto fenomênico eleito pela norma regulamentar brasileira para tornar ilegal a Cannabis.

Tendo isso presente, o art. 1º, parágrafo único, da Lei n. 11.343/2006 considera "como drogas as substâncias ou produtos capazes de causar dependência", assim definidas por ato da autoridade sanitária. Adiante, o art. 2º, caput, enuncia: "ficam proibidas, em todo o território nacional, as drogas, bem como o plantio, a cultura, a colheita e a exploração de vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas, ressalvada a hipótese de autorização legal ou regulamentar [...]". Já o seu parágrafo único dispõe que a União pode "autorizar o plantio, a cultura e a colheita dos vegetais referidos no caput deste artigo, exclusivamente para fins medicinais ou científicos [...]". Ditos vegetais são os mesmos descritos na cabeça do dispositivo, ou seja, aqueles singularizados pela característica de deles se poder extrair ou produzir drogas.

Por sua vez, drogas, segundo a dicção legal, são substâncias ou produtos capazes de provocar dependência, isto é, por previsão regulamentar aplicável à Cannabis, substâncias ou produtos que contenham THC, e, por isso, causariam efeitos psicotrópicos.

Contudo, os índices de THC gerados pelo cânhamo industrial - abaixo do globalmente aceito limite de 0,3% - são, como visto, insuficientes para produzir os efeitos psicoativos ensejadores da vedação indistinta imposta pela norma regulamentar sobre a planta e suas partes, consoante previsto na Portaria da Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde (SVS/MS) n. 344/1998.

Por conseguinte, a ausência de diferenciação, no âmbito regulamentar, quanto ao cânhamo industrial, com baixos teores de THC, desvirtua a finalidade da lei, cujo objetivo primordial consiste em prevenir o uso e o comércio de substâncias que provoquem dependência, tão somente.

Assim, conferir ao cânhamo industrial o mesmo tratamento proibitivo imposto à maconha, desprezando, para tanto, as fundamentais distinções científicas existentes entre ambos, configura medida nitidamente discrepante da teleologia abrigada pela Lei n. 11.343/2006.

Desse modo, a partir de interpretação balizada por redução teleológica do alcance normativo dos artigos 1º, parágrafo único, e 2º, caput e parágrafo único, da Lei n. 11.343/2006, a importação de sementes, o cultivo e a comercialização de plantas de cânhamo industrial no País - desde que respeitado percentual menor que 0,3% de THC - não são alcançados pela vedação estabelecida pelos apontados dispositivos legais.

Noutro giro, em homenagem ao princípio da legalidade (art. 5º, II, CF), tais atividades não podem ser proibidas por normas infralegais, sem que isso implique, todavia, deixar de se submeterem à normatização, controle e fiscalização das etapas e processos envolvidos na cadeia produtiva pelos órgãos estatais competentes, os quais devem disciplinar a execução dessas e de outras ações pertinentes por atos regulamentares, expedidos no âmbito das suas competências.

Nesse proceder, em sua atuação normativa, incumbe particularmente à ANVISA, no exercício de sua discricionariedade administrativa, suprir a ausência de regulamentação relativa ao cultivo de Hemp, decorrente de equivocada interpretação ampliativa que adotou em relação à proibição prevista na Lei de Drogas.

Para isso, cabe à autarquia avaliar a adoção de diretrizes destinadas a obstar o desvio ou a destinação indevida das plantas (e.g. rastreabilidade genética, restrição do cultivo a determinadas áreas, eventual necessidade de plantio indoor ou limitação quantitativa de produção nacional), bem como para garantir a idoneidade das pessoas jurídicas habilitadas a exercerem tais atividades (e.g. cadastramento prévio, regularidade fiscal/trabalhista, ausência de anotações criminais dos responsáveis técnicos/administrativos e demais empregados), sem prejuízo de outras medidas para preservar a segurança na respectiva cadeia produtiva e/ou comercial.

Por outro lado, verifica-se que há inércia regulamentar do Poder Público nacional sobre o cultivo e comercialização da Cannabis no País, o que impacta negativamente o acesso a tratamento qualificado de saúde para inúmeros pacientes.

O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça firmaram entendimento segundo o qual o Poder Judiciário, em situações excepcionais, pode determinar a adoção, pela Administração Pública, de medidas assecuratórias de direitos constitucionalmente reconhecidos como essenciais, sem que isso configure violação do princípio da separação de poderes e da reserva do possível, sendo viável, ainda, a fixação de diretrizes a serem observadas pelo Poder Público para o cumprimento da decisão judicial (Tema n. 698/STF; AgInt no AgInt no AREsp n. 2.108.655/CE, Rel. Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, DJe 2/4/2024; REsp n. 1.804.607/MS, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 11.10.2019).

No âmbito do STJ, a orientação jurisprudencial das Turmas que integram a Terceira Seção, firmada em crescente número de impetrações habeas corpus, é no sentido de autorizar o plantio de Cannabis - independentemente das suas variedades - por pessoas físicas, para fins medicinais, de modo a permitir a extração de substâncias necessárias à produção de medicamentos artesanais prescritos por profissionais de saúde, afastando, em consequência, a caracterização dos crimes dos arts. 28 e 33 da Lei n. 11.343/2006.

Assim, fixam-se as seguintes teses:

I - Nos termos dos arts. 1º, parágrafo único, e 2º, caput, da Lei n. 11.343/2006 (Lei de Drogas), não pode ser considerado proscrito o cânhamo industrial (Hemp), variedade da Cannabis com teor de Tetrahidrocanabinol (THC) inferior a 0,3%, porquanto inapto à produção de drogas, assim entendidas substâncias psicotrópicas capazes de causar dependência;

II - De acordo com a Convenção Única sobre Entorpecentes (Decreto n. 54.216/1964) e a Lei n. 11.343/2006 (Lei de Drogas), compete ao Estado brasileiro estabelecer a política pública atinente ao manejo e ao controle de todas as variedades da Cannabis, inclusive o cânhamo industrial (Hemp), não havendo, atualmente, previsão legal e regulamentar que autorize seu emprego para fins industriais distintos dos medicinais e/ou farmacêuticos, circunstância que impede a atuação do Poder Judiciário;

III - À vista da disciplina normativa para os usos médicos e/ou farmacêuticos da Cannabis, as normas expedidas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA (Portaria SVS/MS n. 344/1998 e RDC n. 327/2019) proibindo a importação de sementes e o manejo doméstico da planta devem ser interpretadas de acordo com as disposições da Lei n. 11.343/2006, não alcançando, em consequência, a variedade descrita no item I (cânhamo industrial - Hemp), cujo teor de THC é inferior a 0,3%;

IV - É lícita a concessão de autorização sanitária para plantio, cultivo, industrialização e comercialização do cânhamo industrial (Hemp) por pessoas jurídicas, para fins exclusivamente medicinais e/ou farmacêuticos atrelados à proteção do direito à saúde, observada a regulamentação a ser editada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA e pela União, no âmbito de suas respectivas atribuições, no prazo de 06 (seis) meses, contados da publicação deste acórdão;

V - Incumbe à Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA e à União, no exercício da discricionariedade administrativa, avaliar a adoção de diretrizes destinadas a obstar o desvio ou a destinação indevida das sementes e das plantas (e.g. rastreabilidade genética, restrição do cultivo a determinadas áreas, eventual necessidade de plantio indoor ou limitação quantitativa de produção nacional), bem como para garantir a idoneidade das pessoas jurídicas habilitadas a exercerem tais atividades (e.g. cadastramento prévio, regularidade fiscal/trabalhista, ausência de anotações criminais dos responsáveis técnicos/administrativos e demais empregados), sem prejuízo de outras medidas para preservar a segurança na respectiva cadeia produtiva e/ou comercial.

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