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STF

ADPF 709 Ref-MC-DF

Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental

Relator: Luís Roberto Barroso

Julgamento: 05/08/2020

Publicação: 07/10/2020

STF

ADPF 709 Ref-MC-DF

Tese Jurídica

O Plenário, por maioria, referendou cautelar deferida parcialmente em ADPF na qual se questiona um conjunto de atos comissivos e omissivos do Poder Público, relacionados ao combate à pandemia por Covid-19, que implicariam alto risco de contágio e de extermínio de diversos povos indígenas.

Resumo Oficial

O Plenário, por maioria, referendou cautelar deferida parcialmente em ação de descumprimento de preceito fundamental na qual se questiona um conjunto de atos comissivos e omissivos do Poder Público, relacionados ao combate à pandemia por Covid-19, que implicariam alto risco de contágio e de extermínio de diversos povos indígenas.

A cautelar foi deferida pelo Min. Roberto Barroso (relator) nos seguintes termos: “III. SÍNTESE DAS CAUTELARES DEFERIDAS 62. Diante do exposto, são as seguintes as medidas cautelares deferidas por este Relator: III.1. QUANTO AOS POVOS INDÍGENAS EM ISOLAMENTO OU POVOS INDÍGENAS DE RECENTE CONTATO: 1. Criação de barreiras sanitárias, que impeçam o ingresso de terceiros em seus territórios, conforme plano a ser apresentado pela União, ouvidos os membros da Sala de Situação (infra), no prazo de 10 dias, contados da ciência desta decisão. 2. Criação de Sala de Situação, para gestão de ações de combate à pandemia quanto aos Povos Indígenas em Isolamento e de Contato Recente, nos seguintes termos: (i) composição pelas autoridades que a União entender pertinentes, bem como por membro da Procuradoria-Geral da República, da Defensoria Pública da União e por representantes indígenas indicados pela APIB; (ii) indicação de membros pelas respectivas entidades, no prazo de 72 horas a contar da ciência desta decisão, apontando-se seus respectivos nomes, qualificações, correios eletrônicos e telefones de contato, por meio de petição ao presente juízo; (iii) convocação da primeira reunião da Sala de Situação, pela União, no prazo de 72 horas, a contar da indicação de todos os representantes, por correio eletrônico com aviso de recebimento encaminhado a todos eles, bem como por petição ao presente juízo; (iv) designação e realização da primeira reunião, no prazo de até 72 horas da convocação, anexada a respectiva ata ao processo, para ciência do juízo. III.2. QUANTO A POVOS INDÍGENAS EM GERAL 1. Inclusão, no Plano de Enfrentamento e Monitoramento da Covid-19 para os Povos Indígenas (infra), de medida emergencial de contenção e isolamento dos invasores em relação às comunidades indígenas ou providência alternativa, apta a evitar o contato. 2. Imediata extensão dos serviços do Subsistema Indígena de Saúde aos povos aldeados situados em terras não homologadas. 3. Extensão dos serviços do Subsistema Indígena de Saúde aos povos indígenas não aldeados, exclusivamente, por ora, quando verificada barreira de acesso ao SUS geral. 4. Elaboração e monitoramento de um Plano de Enfrentamento da COVID-19 para os Povos Indígenas Brasileiros pela União, no prazo de 30 dias contados da ciência desta decisão, com a participação do Conselho Nacional de Direitos Humanos e dos representantes das comunidades indígenas, nas seguintes condições: (i) indicação dos representantes das comunidades indígenas, tal como postulado pelos requerentes, no prazo de 72 horas, contados da ciência dessa decisão, com respectivos nomes, qualificações, correios eletrônicos e telefones de contatos, por meio de petição ao presente juízo; (ii) apoio técnico da Fundação Oswaldo Cruz e do Grupo de Trabalho de Saúde Indígena da Associação Brasileira de Saúde Coletiva – ABRASCO, cujos representantes deverão ser indicados pelos requerentes, no prazo de 72 horas a contar da ciência desta decisão, com respectivos nomes, qualificações, correios eletrônicos e telefones de contato; (iii) indicação pela União das demais autoridades e órgãos que julgar conveniente envolver na tarefa, com indicação dos mesmos elementos. 63. Observa-se, por fim, que todos os prazos acima devem ser contados em dias corridos e correrão durante o recesso. O término do recesso coincidirá aproximadamente com a conclusão da elaboração dos planos e seu exame pelo juízo, de modo que não há risco de concretização de medidas irreversíveis antes do retorno do Supremo Tribunal Federal a pleno funcionamento, ressalvadas novas situações emergenciais que possam ocorrer no período e que demandem interferência imediata. 64. A implementação das cautelares não prejudica que se dê continuidade a todas as ações de saúde já em curso e planejadas em favor das comunidades indígenas, que não devem ser interrompidas. CONCLUSÃO 65. Por todo o exposto, defiro parcialmente as cautelares postuladas pelos requerentes, nos termos e condições previstos acima (item III)”.

Reconheceu-se a presença dos requisitos autorizadores da concessão parcial da cautelar, ressaltando-se a existência de indícios de expansão acelerada do contágio pelo Covid-19 nas comunidades indígenas e a insuficiência das ações promovidas pela União para sua contenção.

O relator salientou, inicialmente, as três diretrizes que embasaram sua decisão: 1) os princípios da precaução e da prevenção, no que respeita à proteção à vida e à saúde; 2) a necessidade de diálogo institucional entre o Judiciário e o Poder Executivo, em matéria de políticas públicas decorrentes da Constituição Federal (CF); e 3) a imprescindibilidade de diálogo intercultural, em toda questão que envolva os direitos de povos indígenas.

Quanto à primeira diretriz, asseverou a preocupação concernente ao risco de extinção de etnias se a doença se espalhar de forma descontrolada. O objetivo é o de salvar o maior número de vidas possível e de preservar essas etnias. No que se refere à segunda, afirmou que a concretização das políticas públicas necessárias depende diretamente da atuação do Ministério da Saúde e das Forças Armadas. Registrou, no ponto, que as Forças Armadas já vêm atuando nesse sentido, mediante a entrega de cestas básicas e suprimentos e materiais de saúde a diversas comunidades indígenas, e, em parceria com o Ministério da Saúde, por meio de atenção médica a tais povos. As medidas requeridas implicam a mobilização de múltiplas instituições e agentes, com expertise técnica e experiência em suas respectivas áreas de atuação. Demandam a tomada de posição sobre temas a respeito dos quais as capacidades institucionais do Supremo Tribunal Federal podem ser limitadas. Portanto, é imprescindível que se estabeleça uma interlocução entre os distintos órgãos do Poder Executivo e o Poder Judiciário, para que se busque, tanto quanto possível, uma solução consensual para o problema sob exame. Relativamente à terceira, observou que cada comunidade possui particularidades, circunstâncias e cultura próprias. É preciso permitir que esses povos expressem suas necessidades e auxiliar o Estado na busca de soluções cabíveis. Por essa razão, toda e qualquer decisão que envolva povos indígenas deve assegurar também um diálogo intercultural. Existe, inclusive, tratado de direito internacional ratificado e internalizado pelo Brasil que determina que decisões acerca da proteção da vida, da saúde e do meio ambiente que envolvam povos indígenas devem necessariamente ser tomadas com a sua participação (Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho - OIT).

Esclareceu terem sido formulados, na ação, pedidos específicos em relação aos povos indígenas em isolamento ou de contato recente, bem como pedidos que se destinam aos povos indígenas em geral. Não obstante tenha reputado todos os pedidos relevantes e pertinentes, entendeu que nem todos poderiam ser integralmente acolhidos no âmbito precário de uma decisão cautelar ou satisfeitos por simples ato de vontade, por exigirem planejamento adequado e diálogo institucional entre os Poderes.

No que respeita ao pedido de criação de barreiras sanitárias formulado em favor dos povos indígenas em isolamento ou de contato recente, considerou que a opção pelo não contato decorre de direito desses povos à autodeterminação e constitui uma forma de preservar a sua identidade cultural e as suas próprias organizações, usos, costumes e tradições. Por isso, o ingresso de qualquer membro exógeno à comunidade, sem a sua autorização, constitui um ilícito. Tais povos têm direito ao isolamento e o Estado tem o dever de assegurá-lo. Ademais, na atual situação, com uma pandemia em curso, os povos em isolamento e de contato recente são os mais expostos ao risco de contágio e de extinção. Isso decorre das condições de vulnerabilidade imunológica e sociocultural. De acordo com diretrizes internacionais da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), a medida protetiva mais eficaz a ser tomada em favor de tais povos é assegurar-lhes o isolamento da sociedade envolvente, por meio de barreiras ou cordões sanitários que impeçam — inclusive com o uso da força, se necessário — o acesso de estranhos às suas terras. No ponto, reconheceu a presença de perigo na demora, dado que há risco iminente de contágio, caso não se criem mecanismos de contenção do ingresso nessas terras. Afirmou que os recursos materiais e de pessoal a serem utilizados nas barreiras, sua localização, os protocolos sanitários a serem empregados pelos agentes do Estado e demais especificações devem ser determinados pela União, por meio da elaboração de um plano, ouvidos os membros integrantes da Sala de Situação. 

Com base nos princípios da precaução e da prevenção, o relator reconheceu, também, a verossimilhança do direito à criação de uma Sala de Situação e perigo na demora. A criação dessa Sala de Situação para a gestão da epidemia, no que respeita a povos indígenas e de recente contato, é prevista em norma federal expedida pelo Ministério da Saúde (Portaria Conjunta 4.094/2018, do Ministério da Saúde e da Fundação Nacional do Índio - FUNAI). Portanto, não há que se falar em interferência do Judiciário sobre Políticas Públicas, mas em mera implementação judicial de norma federal que não está sendo observada pelo Poder Executivo. Deferiu, nessa mesma linha, o pleito de participação indígena na Sala de Situação, haja vista o seu respaldo pela Convenção 169 da OIT. A Convenção prevê, ainda, que o Poder Público deve assegurar os meios necessários para que as instituições responsáveis pela administração de programas no interesse dessas comunidades funcionem adequadamente. Essa norma acolhe o pleito de participação da Defensoria Pública da União e do Ministério Público Federal, que poderão apoiar os representantes dos povos indígenas. A Defensoria por seu papel na defesa dos necessitados (CF, art. 134) e o Ministério Público por seu papel de defesa dos direitos e interesses das populações indígenas (CF, art. 129, V).

No que tange ao pedido, dirigido aos povos indígenas em geral, de retirada de invasores das terras indígenas indicadas, julgou presente a verossimilhança do direito alegado. A presença desses grupos em terras indígenas constitui violação do direito de tais povos ao seu território, à sua cultura e ameaça à sua vida e saúde. Observou que essas invasões se deram para o cometimento de crimes, como o desmatamento, a extração ilegal de madeira e o garimpo ilegal. A remoção, portanto, é medida imperativa, imprescindível e dever da União, sendo inaceitável a inação do governo federal em relação a esse fato. No entanto, admitiu que a situação não é nova e não guarda relação com a pandemia. Trata-se de problema social gravíssimo, que ocorre em diversas terras indígenas e unidades de conservação, de difícil resolução, dado o grande contingente de pessoas (mais de 20.000 invasores em apenas uma das áreas) e o elevado risco de conflito armado. Não há como equacionar e solucionar esse problema nos limites de uma medida cautelar. Porém, a União deve se organizar para enfrentar o problema, que só faz crescer, e formular um plano de desintrusão. Acrescentou que cria risco de contágio o ingresso de pessoas estranhas às comunidades indígenas, inclusive de equipes médicas do Ministério da Saúde e das Forças Armadas. Há, portanto, considerável periculum in mora inverso na determinação da retirada como postulada, já que implicaria o ingresso de forças militares e policiais em terra indígena, com risco de conflito armado durante a pandemia e, por conseguinte, poderia agravar a ameaça já existente à vida de tais povos. Assim, julgou recomendável que se considere, por ora, medida emergencial de contenção e isolamento dos invasores em relação às comunidades indígenas ou providência alternativa apta a evitar o contato.

O relator também vislumbrou verossimilhança do direito alegado e perigo da demora, relativamente ao pleito de extensão do Subsistema de Saúde Indígena também aos indígenas urbanos (não aldeados) e aos indígenas aldeados, residentes em terras indígenas, cuja demarcação e homologação ainda não foram concluídas pelo Poder Público. Salientou que a Secretaria Especial de Saúde Indígena - SESAI e da FUNAI limitaram o atendimento por esse subsistema apenas aos indígenas aldeados, residentes em terras indígenas homologadas. Esclareceu que, no tocante aos indígenas aldeados residentes em terras não homologadas, a alegação de que podem recorrer ao SUS geral é de viabilidade duvidosa, já que se trata de povos situados em locais de difícil acesso, sem capilaridade de postos de saúde e hospitais, e com práticas culturais, idioma e eventuais particularidades que o SUS geral não está habilitado a atender. Portanto, o acesso ao citado subsistema deve ser imediato. Quanto aos indígenas urbanos não aldeados, observou que são remetidos ao SUS normal, o qual, no entanto, é desconhecedor das suas necessidades específicas e peculiaridades culturais. Entretanto, tendo em conta que o subsistema precisará passar por uma considerável readequação, que tende a absorver parte significativa da sua capacidade institucional ao passar a atender, de imediato, os indígenas aldeados localizados em terras não homologadas, que não eram alcançados por seus serviços, o relator entendeu haver perigo na demora inverso no deferimento imediato da cautelar em face da eventual sobrecarga do subsistema. Por essa razão, determinou a extensão dos serviços do subsistema aos povos indígenas não aldeados, por ora, quando verificada barreira de acesso ao SUS geral.

O ministro Roberto Barroso concluiu pela necessidade da elaboração e do monitoramento de um plano de enfrentamento da pandemia para os povos indígenas brasileiros com a participação dos representantes dessas comunidades. Salientou que, a fim de assegurar o diálogo institucional e intercultural, por um lado, e de observar os princípios da precaução e da prevenção de outro, cabe à União a formulação do referido plano, com a participação do Conselho de Direitos Humanos, dos representantes dos povos indígenas e demais consultores ad hoc.

Vencidos, parcialmente, o ministro Edson Fachin, que deferia a liminar em maior amplitude, e o ministro Ricardo Lewandowski, que acompanhava o relator, mas estabelecia prazos.

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