STJ - Sexta Turma

HC 768.440-SP

Habeas Corpus

Relator: Rogerio Schietti Cruz

Julgamento: 20/08/2024

Publicação: 29/08/2024

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STJ - Sexta Turma

HC 768.440-SP

Tese Jurídica

Enquanto não se atinge o patamar ideal, em que todas as polícias do Brasil estejam equipadas com bodycams em tempo integral, diante da possibilidade de que se criem discursos ou narrativas dos fatos para legitimar a diligência policial, deve-se, no mínimo, exigir que se exerça um especial escrutínio sobre o depoimento policial.

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Resumo Oficial

O caso sob exame traz a lume antiga discussão sobre a legitimidade do procedimento policial que, depois do ingresso no interior da residência de determinado indivíduo, sem autorização judicial, logra encontrar e apreender drogas - de sorte a configurar a suposta prática do crime previsto no art. 33, caput, da Lei n. 11.343/2006 -, cujo caráter permanente autorizaria, segundo ultrapassada linha de pensamento, o ingresso domiciliar.

O Plenário do Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento do RE n. 603.616/RO, com repercussão geral previamente reconhecida (Tema STF n. 280), assentou que "a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados" (Rel. Ministro Gilmar Mendes, DJe 8/10/2010).

Depois do julgamento do Supremo, o Superior Tribunal de Justiça, imbuído da sua missão constitucional de interpretar a legislação federal, passou - sobretudo a partir do REsp n. 1.574.681/RS (Rel. Ministro Rogerio Schietti, DJe 30/5/2017) - a tentar dar concretude à expressão "fundadas razões", por se tratar de expressão extraída pelo STF do art. 240, § 1º, do CPP. Assim, dentro dos limites definidos pela Carta Magna e pelo Supremo Tribunal Federal, esta Corte vem empreendendo esforços para interpretar o art. 240, § 1º, do CPP e, em cada caso, decidir sobre a existência prévia (ou não) de elementos prévios e concretos que amparem a diligência policial e configurem fundadas razões quanto à prática de crime no interior do imóvel.

A discussão, em geral, gira em torno de saber se, dada a narrativa fática trazida pelos policiais sobre os elementos que tinham antes de realizar a medida invasiva, ela foi válida ou não.

Todavia, a jurisprudência deste Superior Tribunal, pontualmente, vem avançando para analisar também, à luz das regras de direito probatório, a suficiência da versão policial, sobretudo quando se trata de versão inverossímil, incoerente ou infirmada por algum elemento dos autos.

Passa a ser relevante nesses casos, portanto, saber não apenas se aquele contexto fático descrito pela polícia autorizava ou não a ação, mas também se foi atingido o standard probatório para que aquela versão possa efetivamente ser considerada provada.

Tomando como experiência estrangeira sobre a temática em julgamento, vale mencionar que, nos Estados Unidos da América, depois do julgamento do caso Mapp v. Ohio (1961) - no qual a Suprema Corte expandiu a regra de exclusão das provas ilícitas (exclusionary rule) aos tribunais estaduais -, observou-se que, em muitas ocasiões, em vez de adequar sua conduta para respeitar as regras sobre a legalidade de medidas invasivas, a polícia passou a burlar a proibição por meio da alteração das narrativas sobre as prisões. Por exemplo, o que antes era uma justificativa pouco comum começou a ser frequente nos depoimentos policiais: ao avistar a guarnição, o indivíduo supostamente haveria corrido e dispensado uma sacola com drogas, circunstâncias que tornavam a apreensão das substâncias válida.

Em um estudo empírico que analisou quase quatro mil autos de prisão em flagrante no distrito de Manhattan no período de seis meses antes e seis meses depois do julgamento do caso Mapp, constatou-se um aumento de até 85,5% desse tipo de descrição da ocorrência, fenômeno comportamental que ficou conhecido como dropsy testimony, em razão do verbo to drop (soltar/largar).

Outro estudo realizado na cidade de Nova Iorque em período similar chegou a resultados parecidos e concluiu que "Mudanças suspeitas nos dados de prisões após o julgamento do caso Mapp indicam claramente que muitas alegações policiais foram alteradas para se adequarem aos requisitos de Mapp".

O dropsy testimony, naquele país, foi visto como parte de um fenômeno mais amplo, conhecido como testilying, mistura do verbo testify (testemunhar) com lying (mentindo), prática associada à conduta de distorcer os fatos em juízo para tentar legitimar uma ação policial ilegal, como, por exemplo, "fabricar" a justa causa para uma medida invasiva. No cenário brasileiro, esse fenômeno é conhecido, no jargão policial, por "arredondar a ocorrência", ou seja, "tornar transparente uma situação embaraçosa".

É o que frequentemente se vê, por exemplo, nos casos em que se alega de maneira absolutamente inverossímil que o réu, depois de abordado e revistado em via pública, sem nenhum objeto ilícito, milagrosamente convidou o policial para ir até a sua casa e consentiu com a realização de uma busca que resulta na apreensão de quilos de drogas que lhe custarão anos na prisão.

O cenário descrito traz de volta à tona a discussão sobre o valor probatório do testemunho policial, meio de prova admitido e ainda visto como relevante por esta Corte, mas que gradativamente vem sofrendo importantes relativizações, sobretudo em contextos nos quais a narrativa dos agentes se mostra claramente inverossímil.

Reforça-se, nessa conjuntura, a importância da corroboração do depoimento policial por outros elementos independentes, cujo principal e mais confiável exemplo é a filmagem por meio de câmeras corporais, na linha do que já se externou em outros julgamentos desta Corte.

Também nos EUA, aliás, essa "regra de corroboração" (corroboration rule) é apontada como uma das principais formas de enfrentar os fenômenos dropsy e testilying.

Enquanto não se atinge o patamar ideal, em que todas as polícias do Brasil estejam equipadas com bodycams em tempo integral, diante da possibilidade de que se criem discursos ou narrativas dos fatos para legitimar a diligência policial, deve-se, no mínimo, exigir que se exerça um "especial escrutínio" sobre o depoimento policial, na linha do que propôs o Ministro Gilmar Mendes, por ocasião do julgamento do Tema de Repercussão Geral n. 280: "O policial pode invocar o próprio testemunho para justificar a medida. Claro que o ingresso forçado baseado em fatos presenciados pelo próprio policial que realiza a busca coloca o agente público em uma posição de grande poder e, por isso mesmo, deve merecer especial escrutínio".

Trata-se, portanto, de abandonar a cômoda e antiga prática de atribuir caráter quase inquestionável a depoimentos prestados por testemunhas policiais, como se fossem absolutamente imunes à possibilidade de desviar-se da verdade; do contrário, deve-se submetê-los a cuidadosa análise de coerência - interna e externa -, verossimilhança e consonância com as demais provas dos autos, conforme decidido pela Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça no HC n. 877.943/MS (Rel. Ministro Rogerio Schietti, DJe 14/5/2024).

Para isso, é fundamental repensar práticas usuais e inadequadas que dificultam o exercício desse especial escrutínio sobre o testemunho policial. Uma delas é o frequente "copia e cola" dos depoimentos dos agentes no inquérito, o qual sugere que ou eles foram ouvidos juntos - em violação da incomunicabilidade das testemunhas - ou apenas um deles foi ouvido - do que decorre a falsidade do segundo termo de depoimento.

Outro expediente a ser repelido é a leitura integral do boletim de ocorrência para os policiais em juízo a fim de que apenas confirmem o seu teor, prática que gera induzimento da resposta (art. 212, caput, do CPP), burla indevidamente a vedação a que a testemunha traga suas declarações por escrito (art. 204, caput, do CPP) e configura verdadeiro simulacro de depoimento, o que deve ser substituído por um relato inicial livre e espontâneo do agente sobre os fatos, de modo a permitir um exame efetivo da narrativa apresentada sob o crivo do contraditório.

Isso não significa, naturalmente, desprezar como regra o depoimento policial ou presumir a sua falsidade, mas apenas repensar a crença ingênua e dissociada da realidade de que policiais nunca faltam com a verdade.

Portanto, Judiciário e Ministério Público devem ter a coragem necessária para "chamar as coisas pelo nome certo" e exercer o devido controle sobre a atividade policial.

No caso, de acordo com a versão acusatória, a entrada dos policiais na residência do acusado haveria sido supostamente embasada no seguinte contexto fático: a) os policiais abordaram o corréu porque ele estava transitando com sua motocicleta e quase colidiu com a viatura; b) ele confessou espontaneamente que tinha drogas na mochila e indicou o endereço e as características físicas do paciente e suposto fornecedor das substâncias; c) os policiais foram até o endereço informado e chamaram pelo morador, mas, antes que ele abrisse o portão, os agentes o teriam visto arremessar, de dentro da casa, entorpecentes, uma balança de precisão e um celular para outra casa; d) a esposa do suposto fornecedor abriu o portão; e) foi realizada busca domiciliar e, nela, apreenderam-se drogas.

Observa-se, no entanto, a existência de relevante conflito de versões, de importantes contradições nos depoimentos dos policiais envolvidos na ocorrência e total inverossimilhança da narrativa por eles apresentada em cotejo com a versão do acusado. Ademais, é incontroverso nos autos que, apenas dois meses antes dos fatos ora analisados, o réu havia sido absolvido em outro processo de tráfico, em razão de haver sido torturado com agressões físicas e choques elétricos por policiais militares do mesmo batalhão. A tortura foi reconhecida pela Corregedoria da própria PM ao final do procedimento administrativo instaurado contra os agentes para apurar os fatos e também pelo Tribunal de origem, quando julgou a apelação e absolveu o réu.

Segundo o réu e as testemunhas de defesa, o fato de ele haver denunciado a tortura dos policiais deu causa a episódios de intimidação e retaliação. Ainda que não fossem exatamente os mesmos policiais que foram condenados pela tortura ao acusado, tratava-se de agentes do mesmo batalhão de ações especiais e o contexto descrito nos autos corrobora a tese de retaliação contra o paciente, por haver denunciado a tortura que sofreu por parte de alguns membros do grupo. Relatos sobre esse tipo de prática, aliás, não são raros em situações nas quais ilegalidades praticadas por policiais são expostas.

É clara a ausência de consentimento livre e voluntário para ingresso no imóvel, uma vez que o paciente falou para sua esposa abrir o portão só para que os policiais não o arrombassem, já que estavam tentando forçá-lo, de modo que a mera submissão à força policial não pode ser considerada consentimento livre e voluntário. Desde sua oitiva na delegacia, aliás, o réu sempre deixou claro que, "como os policiais estavam quase arrombando o portão, sua esposa abriu e eles entraram".

Assim, diante do conflito entre a versão acusatória, bastante inverossímil, e a do acusado, a qual está amparada no depoimento de duas testemunhas e de uma informante, não há como considerar provada a existência da justificativa apresentada para a realização da busca domiciliar, de modo que se deve reconhecer a ilicitude da diligência e, por consequência, de todas as provas dela derivadas, o que conduz à absolvição do acusado.

Cabe salientar, que não houve gravação audiovisual da ação policial, o que poderia haver dirimido as relevantes dúvidas existentes sobre a dinâmica fática, as quais, uma vez que persistem, devem favorecer o acusado, em conformidade com antigo brocardo jurídico in dubio pro reo.

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