A controvérsia consiste em definir se é possível que o julgador condene criminalmente o réu mesmo quando o Ministério Público pede expressamente a sua absolvição em alegações finais, sobretudo à luz das disposições trazidas pela nova Lei n. 13.964/2019, cuja sistemática haveria revogado tacitamente o art. 385 do Código de Processo Penal.
Ao contrário de outros sistemas, em que o Ministério Público dispõe - por critérios de discricionariedade -, da ação, no processo penal brasileiro o Promotor de Justiça não pode abrir mão do dever de conduzir a actio penalis até seu desfecho, quer para a realização da pretensão punitiva, quer para, se for o caso, postular a absolvição do acusado, hipótese que não obriga o juiz natural da causa, consoante disposto no art. 385 do Código de Processo Penal, a atender ao pleito ministerial.
O art. 385 do Código de Processo Penal prevê que, quando o Ministério Público pede a absolvição do acusado, ainda assim o juiz está autorizado a condená-lo, dada, também aqui, sob a ótica do Poder Judiciário, a soberania do ato de julgar. Ademais, no nosso sistema, ao contrário de outros, o órgão ministerial não dispõe livremente da ação penal. O Ministério Público é o titular da ação penal, mas dela não pode, por razões de conveniência institucional, simplesmente dispor, tal como ocorre na ação penal de iniciativa privada.
A compreensão, portanto, é de que as posições contingencialmente adotadas pelos representantes do Ministério Público no curso de um processo não eliminam o conflito que está imanente, permanente, na persecução penal, que é o conflito entre o interesse punitivo do Estado, representado pelo Parquet, Estado acusador, e o interesse de proteção à liberdade do indivíduo acusado, ambos sob a responsabilidade do órgão incumbido da soberana função de julgar, por meio de quem, sopesadas as alegações e as provas produzidas sob o contraditório judicial, o Direito se expressa concretamente.
Portanto, mesmo que o órgão ministerial, em alegações finais, não haja pedido a condenação do acusado, ainda assim remanesce presente a pretensão acusatória formulada no início da persecução penal - pautada pelos princípios da obrigatoriedade, da indisponibilidade e pelo caráter publicista do processo -, a qual é julgada pelo Estado-juiz, mediante seu soberano poder de dizer o direito (juris dicere).
É preciso lembrar, a propósito, que o princípio da correlação vincula o julgador apenas aos fatos narrados na denúncia - aos quais ele pode, inclusive, atribuir qualificação jurídica diversa (art. 383 do CPP) -, mas não o vincula aos fundamentos jurídicos invocados pelas partes em alegações finais para sustentar seus pedidos.
Dessa forma, uma vez veiculada a acusação por meio da denúncia e alterado o estado natural de inércia da jurisdição - inafastável do Poder Judiciário, nos termos do art. 5º, XXXV, da Constituição Federal -, o processo segue por impulso oficial e o juiz tem o dever - pautado pelo sistema da persuasão racional - de analisar o mérito da causa submetida à sua apreciação à vista da hipótese acusatória contida na denúncia, sem que lhe seja imposto o papel de mero homologador do que lhe foi proposto pelo Parquet.
A submissão do magistrado à manifestação final do Ministério Público, a pretexto de supostamente concretizar o princípio acusatório, implicaria, em verdade, subvertê-lo, transmutando o órgão acusador em julgador e solapando, além da independência funcional da magistratura, duas das basilares características da jurisdição: a indeclinabilidade e a indelegabilidade.
Com efeito, é importante não confundir a desistência da ação - que é expressamente vedada ao Ministério Público pela previsão contida no art. 42 do CPP e que levaria, se permitida, à extinção do processo sem resolução do mérito e sem a formação de coisa julgada material -, com a necessária vinculação do julgador aos fundamentos apresentados por uma das partes em alegações finais, cujo acolhimento leva à extinção com resolução do mérito da causa e à formação de coisa julgada material insuperável, porquanto proibida a revisão criminal pro societate em nosso ordenamento.
Bem observa a doutrina que, ao atribuir privativamente ao Ministério Público a função de promover a ação penal pública, o Constituinte ressalvou no art. 129, I, que isso deveria ser exercido "na forma da lei" ("promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei"), de modo a resguardar ao legislador ordinário alguma margem de conformação constitucional para tratar da matéria, dentro da qual se enquadra a disposição contida no art. 385 do CPP. É dizer, mesmo sujeita a algumas críticas doutrinárias legítimas, a referida previsão normativa não chega ao ponto de poder ser considerada incompatível com o ordenamento jurídico brasileiro, tampouco com o sistema acusatório entre nós adotado.
Faz-se apenas a necessária ponderação, à luz das pertinentes palavras do eminente Ministro Roberto Barroso, no julgamento da AP 976/PE, de que "[t]al norma, ainda que considerada constitucional, impõe ao julgador que decidir pela condenação um ônus de fundamentação elevado, para justificar a excepcionalidade de decidir contra o titular da ação penal".
Vale dizer, uma vez formulado pedido de absolvição pelo dominus litis, caberá ao julgador, na sentença, apresentar os motivos fáticos e jurídicos pelos quais entende ser cabível a condenação e refutar não apenas os fundamentos suscitados pela defesa, mas também aqueles invocados pelo Parquet em suas alegações finais, a fim de demonstrar o equívoco da manifestação ministerial. Isso porque, tal como ocorre com os seus poderes instrutórios, a faculdade de o julgador condenar o acusado em contrariedade ao pedido de absolvição do Parquet também só pode ser exercida de forma excepcional, devidamente fundamentada à luz das circunstâncias do caso concreto.
Assim, diante de todas essas considerações, não há falar em violação dos arts. 3°-A do CPP ("Art. 3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação") e 2°, § 1°, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro ("A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior"), porquanto o art. 385 do CPP não é incompatível com o sistema acusatório entre nós adotado e não foi tacitamente derrogado pelo advento da Lei n. 13.964/2019, responsável por introduzir o art. 3º-A no Código de Processo Penal.
A controvérsia consiste em definir se é possível que o julgador condene criminalmente o réu mesmo quando o Ministério Público pede expressamente a sua absolvição em alegações finais, sobretudo à luz das disposições trazidas pela nova Lei n. 13.964/2019, cuja sistemática haveria revogado tacitamente o art. 385 do Código de Processo Penal.
Ao contrário de outros sistemas, em que o Ministério Público dispõe - por critérios de discricionariedade -, da ação, no processo penal brasileiro o Promotor de Justiça não pode abrir mão do dever de conduzir a actio penalis até seu desfecho, quer para a realização da pretensão punitiva, quer para, se for o caso, postular a absolvição do acusado, hipótese que não obriga o juiz natural da causa, consoante disposto no art. 385 do Código de Processo Penal, a atender ao pleito ministerial.
O art. 385 do Código de Processo Penal prevê que, quando o Ministério Público pede a absolvição do acusado, ainda assim o juiz está autorizado a condená-lo, dada, também aqui, sob a ótica do Poder Judiciário, a soberania do ato de julgar. Ademais, no nosso sistema, ao contrário de outros, o órgão ministerial não dispõe livremente da ação penal. O Ministério Público é o titular da ação penal, mas dela não pode, por razões de conveniência institucional, simplesmente dispor, tal como ocorre na ação penal de iniciativa privada.
A compreensão, portanto, é de que as posições contingencialmente adotadas pelos representantes do Ministério Público no curso de um processo não eliminam o conflito que está imanente, permanente, na persecução penal, que é o conflito entre o interesse punitivo do Estado, representado pelo Parquet, Estado acusador, e o interesse de proteção à liberdade do indivíduo acusado, ambos sob a responsabilidade do órgão incumbido da soberana função de julgar, por meio de quem, sopesadas as alegações e as provas produzidas sob o contraditório judicial, o Direito se expressa concretamente.
Portanto, mesmo que o órgão ministerial, em alegações finais, não haja pedido a condenação do acusado, ainda assim remanesce presente a pretensão acusatória formulada no início da persecução penal - pautada pelos princípios da obrigatoriedade, da indisponibilidade e pelo caráter publicista do processo -, a qual é julgada pelo Estado-juiz, mediante seu soberano poder de dizer o direito (juris dicere).
É preciso lembrar, a propósito, que o princípio da correlação vincula o julgador apenas aos fatos narrados na denúncia - aos quais ele pode, inclusive, atribuir qualificação jurídica diversa (art. 383 do CPP) -, mas não o vincula aos fundamentos jurídicos invocados pelas partes em alegações finais para sustentar seus pedidos.
Dessa forma, uma vez veiculada a acusação por meio da denúncia e alterado o estado natural de inércia da jurisdição - inafastável do Poder Judiciário, nos termos do art. 5º, XXXV, da Constituição Federal -, o processo segue por impulso oficial e o juiz tem o dever - pautado pelo sistema da persuasão racional - de analisar o mérito da causa submetida à sua apreciação à vista da hipótese acusatória contida na denúncia, sem que lhe seja imposto o papel de mero homologador do que lhe foi proposto pelo Parquet.
A submissão do magistrado à manifestação final do Ministério Público, a pretexto de supostamente concretizar o princípio acusatório, implicaria, em verdade, subvertê-lo, transmutando o órgão acusador em julgador e solapando, além da independência funcional da magistratura, duas das basilares características da jurisdição: a indeclinabilidade e a indelegabilidade.
Com efeito, é importante não confundir a desistência da ação - que é expressamente vedada ao Ministério Público pela previsão contida no art. 42 do CPP e que levaria, se permitida, à extinção do processo sem resolução do mérito e sem a formação de coisa julgada material -, com a necessária vinculação do julgador aos fundamentos apresentados por uma das partes em alegações finais, cujo acolhimento leva à extinção com resolução do mérito da causa e à formação de coisa julgada material insuperável, porquanto proibida a revisão criminal pro societate em nosso ordenamento.
Bem observa a doutrina que, ao atribuir privativamente ao Ministério Público a função de promover a ação penal pública, o Constituinte ressalvou no art. 129, I, que isso deveria ser exercido "na forma da lei" ("promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei"), de modo a resguardar ao legislador ordinário alguma margem de conformação constitucional para tratar da matéria, dentro da qual se enquadra a disposição contida no art. 385 do CPP. É dizer, mesmo sujeita a algumas críticas doutrinárias legítimas, a referida previsão normativa não chega ao ponto de poder ser considerada incompatível com o ordenamento jurídico brasileiro, tampouco com o sistema acusatório entre nós adotado.
Faz-se apenas a necessária ponderação, à luz das pertinentes palavras do eminente Ministro Roberto Barroso, no julgamento da AP 976/PE, de que "[t]al norma, ainda que considerada constitucional, impõe ao julgador que decidir pela condenação um ônus de fundamentação elevado, para justificar a excepcionalidade de decidir contra o titular da ação penal".
Vale dizer, uma vez formulado pedido de absolvição pelo dominus litis, caberá ao julgador, na sentença, apresentar os motivos fáticos e jurídicos pelos quais entende ser cabível a condenação e refutar não apenas os fundamentos suscitados pela defesa, mas também aqueles invocados pelo Parquet em suas alegações finais, a fim de demonstrar o equívoco da manifestação ministerial. Isso porque, tal como ocorre com os seus poderes instrutórios, a faculdade de o julgador condenar o acusado em contrariedade ao pedido de absolvição do Parquet também só pode ser exercida de forma excepcional, devidamente fundamentada à luz das circunstâncias do caso concreto.
Assim, diante de todas essas considerações, não há falar em violação dos arts. 3°-A do CPP ("Art. 3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação") e 2°, § 1°, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro ("A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior"), porquanto o art. 385 do CPP não é incompatível com o sistema acusatório entre nós adotado e não foi tacitamente derrogado pelo advento da Lei n. 13.964/2019, responsável por introduzir o art. 3º-A no Código de Processo Penal.