STJ - Quinta Turma
HC 779.289-DF
Habeas Corpus
Relator: Reynaldo Soares da Fonseca
Julgamento: 22/11/2022
Publicação: 28/11/2022
STJ - Quinta Turma
HC 779.289-DF
Tese Jurídica Simplificada
As condutas de plantar maconha para fins medicinais e importar sementes para o plantio são materialmente atípicas, sendo possível expedir salvo-conduto, desde que comprovada a necessidade médica do tratamento.
Nossos Comentários
Tese Jurídica Oficial
As condutas de plantar maconha para fins medicinais e importar sementes para o plantio não preenchem a tipicidade material, motivo pelo qual se faz possível a expedição de salvo-conduto, desde que comprovada a necessidade médica do tratamento.
Resumo Oficial
O tema diz respeito ao direito fundamental à saúde, constante do art. 196 da Carta Magna, que, na hipótese, toca o direito penal, uma vez que o art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal, determina a repressão ao tráfico e ao consumo de substâncias entorpecentes e psicotrópicas, determinando que essas condutas sejam tipificadas como crime inafiançável e insuscetível de graça e de anistia.
Diante da determinação constitucional, foi editada mais recentemente a Lei n. 11.343/2006. Pela simples leitura da epígrafe da referida lei, constata-se que, a contrario sensu, ela não proíbe o uso devido e a produção autorizada. Dessa forma, consta do art. 2º, parágrafo único, que "pode a União autorizar o plantio, a cultura e a colheita dos vegetais referidos no caput deste artigo, exclusivamente para fins medicinais ou científicos, em local e prazo predeterminados, mediante fiscalização, respeitadas as ressalvas supramencionadas".
Os dispositivos da Lei de Drogas que tipificam os crimes, trazem um elemento normativo do tipo redigido nos seguintes termos: "sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar". Portanto, havendo autorização ou determinação legal ou regulamentar, não há se falar em crime, porquanto não estaria preenchido o elemento normativo do tipo. No entanto até o presente momento, não há qualquer regulamentação da matéria, o que tem ensejado inúmeros pedidos perante Poder Judiciário.
Diante da omissão estatal em regulamentar o plantio para uso medicinal da maconha, não é coerente que o mesmo Estado, que preza pela saúde da população e já reconhece os benefícios medicinais da cannabis sativa, condicione o uso da terapia canábica àqueles que possuem dinheiro para aquisição do medicamento, em regra importado, ou à burocracia de se buscar judicialmente seu custeio pela União.
Desde 2015, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária vem autorizando o uso medicinal de produtos à base de cannabis sativa, havendo, atualmente, autorização sanitária para o uso de 18 fármacos. De fato, a ANVISA classificou a maconha como planta medicinal (RDC n. 130/2016) e incluiu medicamentos à base de canabidiol e THC que contenham até 30mg/ml de cada uma dessas substâncias na lista A3 da Portaria n. 344/1998, de modo que a prescrição passou a ser autorizada por meio de Notificação de Receita A e de Termo de Consentimento Informado do Paciente.
Trazendo o exame da matéria mais especificamente para o direito penal, tem-se que o bem jurídico tutelado pela Lei de Drogas é a saúde pública, a qual não é prejudicada pelo uso medicinal da cannabis sativa. Dessa forma, ainda que eventualmente presente a tipicidade formal, não se revelaria presente a tipicidade material ou mesmo a tipicidade conglobante, haja vista ser do interesse do Estado, conforme anteriormente destacado, o cuidado com a saúde da população.
Dessa forma, apesar da ausência de regulamentação pela via administrativa, o que tornaria a conduta atípica formalmente - por ausência de elemento normativo do tipo -, tem-se que a conduta de plantar para fins medicinais não preenche a tipicidade material, motivo pelo qual se faz mister a expedição de salvo-conduto, desde que comprovada a necessidade médica do tratamento, evitando-se, assim, criminalizar pessoas que estão em busca do seu direito fundamental à saúde.
Quanto à importação das sementes para o plantio, tem-se que tanto o Supremo Tribunal Federal quanto o Superior Tribunal de Justiça sedimentaram o entendimento de que a conduta não tipifica os crimes da Lei de Drogas, porque tais sementes não contêm o princípio ativo inerente à cannabis sativa. Ficou assentado, outrossim, que a conduta não se ajustaria igualmente ao tipo penal de contrabando, em razão do princípio da insignificância.
Entretanto, considerado o potencial para tipificar o crime de contrabando, importante deixar consignado que, cuidando-se de importação de sementes para plantio com objetivo de uso medicinal, o salvo-conduto deve abarcar referida conduta, para que não haja restrição, por via transversa do direito à saúde.
Lei de Drogas
Para entendermos o raciocínio do Tribunal, primeiramente, precisamos analisar como ambas as condutas estão expressamente previstas na Lei, antes de partirmos para a decisão em si.
PLANTIO
A conduta de plantar é tipificada no art. 33, §2º, sendo equiparada a tráfico de drogas.
No entanto, quando o plantio é de pequena quantidade, destinado a consumo próprio, a lei dá um tratamento diferenciado à conduta, considerando-a plantio para consumo, não sujeito a penas restritivas de liberdade (art. 28, §1º).
É a forma que a lei entendeu individualizar melhor a conduta, e adequá-la aos fins da própria legislação. Ao diferenciar do possuidor para consumo do possuidor para o tráfico, despenalizando a primeira conduta, a lei afasta o consumidor do ingresso precoce ao mundo do crime por meio da prisão.
IMPORTAÇÃO
A sexta turma do STJ já considerava, desde 2020, que importar pequenas quantidades de semente de maconha não configurava tráfico de drogas (clique aqui para ver nossos comentários), já que a semente não traz consigo o princípio ativo da cannabis (THC). Agora, a novidade é que a Quinta Turma também aderiu a esse entendimento.
USO MEDICINAL
O uso medicinal, desde que autorizado e regulamentado pela União, não é vedado pelo ordenamento brasileiro.
Vejamos o que diz a própria lei de drogas, no artigo 2º, parágrafo único:
Existe regulamentação sobre esse uso medicinal? Mais ou menos. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária até que tentou regulamentar, autorizando o uso medicinal de produtos à base de cannabis sativa para o uso de 18 fármacos diferentes. A agência classificou a maconha como planta medicinal também por meio de regulamento (RDC n. 130/2016) e incluiu medicamentos à base de canabidiol e THC que contenham até 30mg/ml de cada uma dessas substâncias na lista A3 da Portaria n. 344/1998. No entanto, não podemos afirmar que esses atos normativos regulamentam o uso medicinal da planta propriamente dita, mas que autorizam, em alguns pouquíssimos casos, o uso em alguns fármacos.
O Caso
Agora vamos entender o que o STJ efetivamente julgou, e o entendimento do Tribunal sobre as seguintes condutas:
Para o STJ, a conduta de plantar, quando realizada para uso medicinal, não está amoldada no artigo 28, como a literalidade da lei preceitua.
Também, para o Tribunal, a conduta de importar sementes não está amoldada no artigo 33 referente ao tráfico - como já entendia a 6ª turma desde 2020, entendimento este que se estende à 5ª turma.
Por quê?
Os crimes tipificados na Lei de Drogas são de perigo abstrato, sendo o bem jurídico tutelado por esses tipos penais a saúde pública. Segundo o Tribunal, essas condutas discutidas no caso concreto são materialmente atípicas, pois não violam a saúde pública.
Como sabemos, a tipicidade divide-se em:
O Tribunal afirmou que além de as condutas referidas não violarem o bem jurídico "saúde pública" tutelado pela Lei de Drogas, pelo contrário, acaba violando-a ainda mais. Quem recorre à importação de sementes para plantar maconha e fazer uso da planta em razão de uma doença o faz como último recurso para amenizar sintomas de doenças que não conseguem ser curadas pelos fármacos que estão disponíveis no mercado. A omissão do Poder Público em regulamentar o uso para esse fim está violando o direito à saúde, desprotegendo a pessoa que busca essa terapia. Para todos os fins, segundo o Tribunal, diante de uma regulamentação aquém da necessária para resguardar esses casos de uso medicinal, é preciso considerar que existe uma regulamentação, porque não é proporcional nem razoável que se prenda uma pessoa que realizou essas condutas.
Por isso, entenda a diferença: o STJ não aplicou as medidas despenalizadoras do consumo (art. 28) a essas condutas. O STJ considerou que, no caso concreto, as condutas referidas não configuram crime, por carência de tipicidade material.
Isso servirá para todo mundo que alegar uso medicinal, indistintamente? Não. É preciso comprovar a imprescindibilidade, ou seja, da necessidade do uso.