STF - Plenário

HC 185.913-DF

Habeas Corpus

Relator: Gilmar Mendes

Julgamento: 18/09/2024

STF - Plenário

HC 185.913-DF

Tese Jurídica Simplificada

1ª Tese: A celebração do ANPP é de competência do membro do Ministério Público oficiante, o qual deve avaliar o preenchimento dos requisitos para negociação e celebração do acordo, sem prejuízo do regular exercício dos controles jurisdicional e interno. 

2ª Tese: É constitucional a aplicação retroativa do ANPP em processos penais em andamento e sem decisão definitiva quando da entrada em vigência da Lei nº 13.964/2019, mesmo se ausente confissão do réu até aquele momento. 

3ª Tese: Nos processos penais em andamento na data da proclamação do resultado deste julgamento (HC 185.913-DF), nos quais, em tese, seja cabível a negociação de ANPP, se este ainda não foi oferecido ou se ainda não houve motivação para o indeferimento, o Ministério Público, agindo de ofício, a pedido ou mediante provocação do juiz, deve se manifestar sobre o ANPP na primeira oportunidade.

4ª Tese: Nas investigações ou ações penais iniciadas a partir da proclamação do resultado deste julgamento (HC 185.913-DF), a proposição de ANPP pelo Ministério Público, ou a motivação para o seu não oferecimento, devem ser apresentadas antes do recebimento da denúncia, ressalvada a possibilidade de propositura, pelo órgão ministerial, no curso da ação penal, se for o caso.

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Acordo de Não Persecução Penal

O acordo de não persecução penal (ANPP) é um instituto processual inserido no CPP pela Lei Anticrime (Lei 13.964/19). Trata-se de um instrumento celebrado entre o Ministério Público e o investigado, no qual a acusação abre mão da pretensão punitiva mediante o cumprimento de algumas exigências por parte do acusado. Trata-se de um negócio jurídico pré-processual entre a acusação e o investigado.

Para que seja possível celebrar esse acordo, devem estar presentes os seguintes requisitos:

  1. O inquérito policial não pode apresentar hipótese de arquivamento;
  2. Deve existir confissão formal e circunstanciada da prática do crime pelo investigado;
  3. A infração penal em questão não pode ter violência ou grave ameaça; e
  4. A pena mínima legal deve ser inferior a 4 anos.

Segundo o CPP, a reincidência ou a conduta criminosa habitural, reiterada ou profissional, afasta a possibilidade de acordo.

Presentes as referidas circunstâncias, o MP pode propor o acordo, caso constate a necessidade e a suficiência desse instrumento para reprimir e prevenir o crime. Observa-se, portanto, que existe uma certa discricionariedade na decisão do MP sobre a proposição do acordo de não persecução penal (ANPP).

Segue a previsão legal desse instrumento:

CPP

Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente:

I - reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo;

II - renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime;

III - prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal);

IV - pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou

V - cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada.

Caso concreto

No caso analisado, uma pessoa acusada foi condenada por tráfico de drogas privilegiado a uma pena de 1 ano, 11 meses e 10 dias de reclusão em regime aberto, antes da vigência do "Pacote Anticrime". 

O tráfico de drogas privilegiado é a diminuição da pena aos condenados primários, de bons antecedentes e que não integram organização criminosa, conforme previsto na Lei de Drogas:

Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

§ 4º Nos delitos definidos no caput e no § 1º deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa.       

Voltando ao caso concreto, destaca-se que a condenação ocorreu antes da inclusão do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) no ordenamento jurídico. 

Assim, após a criação do instituto do ANPP, o condenado manifestou interesse em celebrar o acordo durante o processo penal, alegando possível essa pretensão, já que ainda não tinha decisão transitada em julgado a sua condenação.

Portanto, em habeas corpus (HC), o STF foi provocado a decidir sobre a possibilidade de celebração do ANPP.

Julgamento

Ao analisar o HC, o STF firmou 4 teses. 

1ª Tese: A celebração do ANPP é de competência do membro do Ministério Público oficiante, o qual deve avaliar o preenchimento dos requisitos para negociação e celebração do acordo, sem prejuízo do regular exercício dos controles jurisdicional e interno. 

Nessa 1ª Tese, o STF entendeu que o Ministério Público tem o poder-dever de avaliar e realizar o acordo, devendo se manifestar motivadamente na primeira oportunidade.

O acusado não tem direito automático ao ANPP, mas tem direito a uma justificativa caso seja negado.

Nesse contexto, a 1ª Tese deve ser interpretada em conjunto com a 3ª Tese, na qual o STF definiu que nos processos penais em andamento na data da proclamação do resultado deste julgamento, nos quais, em tese, seja cabível a negociação de ANPP, se este ainda não foi oferecido ou se ainda não houve motivação para o indeferimento, o Ministério Público, agindo de ofício, a pedido ou mediante provocação do juiz, deve se manifestar sobre o ANPP na primeira oportunidade.

2ª Tese: É constitucional a aplicação retroativa do ANPP em processos penais em andamento e sem decisão definitiva quando da entrada em vigência da Lei nº 13.964/2019, mesmo se ausente confissão do réu até aquele momento. 

De acordo com entendimento do STF, o ANPP é uma norma processual com conteúdo material benéfico ao acusado, por isso deve ser aplicada retroativamente, desde que não tenha havido decisão condenatória transitada em julgado.

Assim, embora possa ser aplicado retroativamente, o ANPP não retroage para desconstituir a coisa julgada.

Nesse sentido, aplica-se a seguinte previsão da CF/88:

 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XL - a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;

Logo, o Plenário da Corte também definiu que esta decisão não afeta casos já julgados e que a análise sobre o cabimento do ANPP deve ocorrer na instância em que o processo se encontrar.

4ª Tese: Nas investigações ou ações penais iniciadas a partir da proclamação do resultado deste julgamento, a proposição de ANPP pelo Ministério Público, ou a motivação para o seu não oferecimento, devem ser apresentadas antes do recebimento da denúncia, ressalvada a possibilidade de propositura, pelo órgão ministerial, no curso da ação penal, se for o caso.

Em razão do entendimento firmado na 1ª e 3ª Tese, o STF determinou que, nas investigações ou ações penais iniciadas a partir da proclamação do resultado do presente HC, o Ministério Público deverá propor o ANPP ou motivar o seu não oferecimento até o recebimento da denúncia. Fica ressalvada, de toda forma, a possibilidade da propositura do ANPP no curso da ação penal. 

Por fim, é importante destacar que se o ANPP for celebrado, a ação e a prescrição são suspensas até o cumprimento do acordo, pois o Estado não pode ser prejudicado se o acusado não cumprir o acordo. Descumprido o ANPP, o Estado deverá retomar o processo.

No caso específico, o Plenário concedeu a ordem de habeas corpus para suspender o processo e a execução da pena até que o Ministério Público se manifeste sobre a viabilidade do ANPP.

Tese Jurídica Oficial

1ª Tese: Compete ao membro do Ministério Público oficiante, motivadamente e no exercício do seu poder-dever, avaliar o preenchimento dos requisitos para negociação e celebração do ANPP, sem prejuízo do regular exercício dos controles jurisdicional e interno;

2ª Tese: É cabível a celebração de Acordo de Não Persecução Penal em casos de processos em andamento quando da entrada em vigência da Lei nº 13.964, de 2019, mesmo se ausente confissão do réu até aquele momento, desde que o pedido tenha sido feito antes do trânsito em julgado;

3ª Tese: Nos processos penais em andamento na data da proclamação do resultado deste julgamento, nos quais, em tese, seja cabível a negociação de ANPP, se este ainda não foi oferecido ou não houve motivação para o seu não oferecimento, o Ministério Público, agindo de ofício, a pedido da defesa ou mediante provocação do magistrado da causa, deverá, na primeira oportunidade em que falar nos autos, após a publicação da ata deste julgamento, manifestar-se motivadamente acerca do cabimento ou não do acordo;

4ª Tese: Nas investigações ou ações penais iniciadas a partir da proclamação do resultado deste julgamento, a proposição de ANPP pelo Ministério Público, ou a motivação para o seu não oferecimento, devem ser apresentadas antes do recebimento da denúncia, ressalvada a possibilidade de propositura, pelo órgão ministerial, no curso da ação penal, se for o caso.

Resumo Oficial

É constitucional — por versar norma mais benéfica ao acusado (CF/1988, art. 5º, XL) — a aplicação retroativa do instituto do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) nos processos penais sem decisão definitiva ou com pedido de celebração de acordo formulado antes do trânsito em julgado.

A previsão do ANPP — introduzida no Código de Processo Penal (CPP/1941, art. 28-A) pela Lei nº 13.964/2019 (“Pacote Anticrime”) — consiste em norma de direito processual com inequívoco conteúdo material, de modo que, por ser norma mais benéfica ao acusado, impõe-se a sua retroatividade.

A prerrogativa de avaliar e de realizar o acordo configura um poder-dever do Ministério Público, a quem cabe se manifestar, motivadamente, na primeira oportunidade em que falar nos processos penais em curso nos quais a negociação, em tese, seja cabível, nos exatos termos em que fixado neste pronunciamento. Relativamente às investigações e aos processos penais iniciados após a proclamação deste julgamento, a proposição ou a motivação para o não oferecimento do acordo deve, em regra, ser apresentada antes do recebimento da denúncia. A decisão objetiva possibilitar a celebração do ANPP onde ele não tenha sido proposto e, em princípio, seja cabível.

Nesse contexto, o acusado não possui direito subjetivo à celebração do ANPP, mas à devida motivação e fundamentação quanto à sua eventual negativa. Ademais, uma vez celebrado o ANPP, ocorre a suspensão da ação e da prescrição até a extinção da punibilidade pelo cumprimento dos termos do acordo.

Na espécie, trata-se de paciente que — antes da vigência do “Pacote Anticrime” — foi condenado, pela prática do crime de tráfico de drogas privilegiado, a uma pena de 1 ano, 11 meses e 10 dias de reclusão, em regime aberto, e que manifestou — após a criação do instituto —, interesse em celebrar o acordo, no curso do processo penal sem decisão transitada em julgado.

Com base nesses e em outros entendimentos, o Plenário, por maioria, concedeu a ordem de habeas corpus para determinar a suspensão do processo e de eventual execução da pena até a manifestação motivada do órgão acusatório sobre a viabilidade de proposta do ANPP, conforme os requisitos previstos na legislação, passível de controle nos termos do art. 28-A, § 14, do CPP/1941. Em conclusão de julgamento, o Tribunal, por unanimidade, fixou a tese anteriormente mencionada e definiu que (i) este pronunciamento não afeta as decisões já proferidas; e (ii) a deliberação sobre o cabimento, ou não, do ANPP deverá ocorrer na instância em que o processo se encontrar.

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