O simples fato de o acusado ter antecedente por tráfico de drogas não autoriza a realização de busca domiciliar, porquanto desacompanhado de outros indícios concretos e robustos de que, nesse momento específico, ele guarda drogas em sua residência.
O art. 5º, XI, da Constituição Federal consagrou o direito fundamental à inviolabilidade do domicílio, ao dispor que a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.
O Supremo Tribunal Federal definiu, em repercussão geral (Tema 280), que o ingresso forçado em domicílio sem mandado judicial apenas se revela legítimo - a qualquer hora do dia, inclusive durante o período noturno - quando amparado em fundadas razões, devidamente justificadas pelas circunstâncias do caso concreto, que indiquem estar ocorrendo, no interior da casa, situação de flagrante delito (RE n. 603.616/RO, Rel. Ministro Gilmar Mendes, DJe 8/10/2010).
Ao julgar o REsp n. 1.574.681/RS (DJe 30/5/2017), esta colenda Sexta Turma decidiu, à unanimidade, que não se há de admitir que a mera constatação de situação de flagrância, posterior ao ingresso, justifique a medida. Se o próprio juiz só pode determinar a busca e apreensão durante o dia, e mesmo assim mediante decisão devidamente fundamentada, após prévia análise dos requisitos autorizadores da medida, não seria razoável conferir a um servidor da segurança pública total discricionariedade para, a partir de mera capacidade intuitiva, entrar de maneira forçada na residência de alguém e, então, verificar se nela há ou não alguma substância entorpecente. A ausência de justificativas e de elementos seguros a autorizar a ação dos agentes públicos, diante da discricionariedade policial na identificação de situações suspeitas relativamente à ocorrência de tráfico de drogas, pode acabar esvaziando o próprio direito à privacidade e à inviolabilidade de sua condição fundamental.
No referido julgamento, concluiu-se, portanto, que, para legitimar-se o ingresso em domicílio alheio, é necessário tenha a autoridade policial fundadas razões para acreditar, com lastro em circunstâncias objetivas, no atual ou iminente cometimento de crime no local onde a diligência vai ser cumprida.
No caso, os policiais receberam uma denúncia anônima segundo a qual o acusado estava com uma arma de fogo em via pública, razão por que o abordaram e encontraram a referida arma. Depois disso, decidiram ir até a sua residência e entraram no imóvel com a suposta autorização do paciente, oportunidade em que soltaram cães farejadores de drogas, sob a justificativa de que o réu tinha um antecedente por tráfico.
Não houve referência a prévia investigação, monitoramento ou campanas no local, a afastar a hipótese de que se tratava de averiguação de informações robustas e atuais acerca da existência de drogas naquele lugar. Da mesma forma, não se fez menção a nenhuma atitude suspeita, externalizada em atos concretos, tampouco movimentação de pessoas típica de comercialização de drogas. A denúncia anônima, aliás, nem sequer tratava da presença de entorpecentes no imóvel, mas sim do porte de arma de fogo em via pública distante do domicílio, a qual já havia sido encontrada e apreendida.
O simples fato de o acusado ter um antecedente por tráfico não autorizava a realização de busca domiciliar, porquanto desacompanhado de outros indícios concretos e robustos de que, naquele momento específico, ele guardava drogas em sua residência.
Admitir a validade desse fundamento para, isoladamente, autorizar essa diligência invasiva, implicaria, em última análise, permitir que todo indivíduo que um dia teve algum registro criminal na vida tenha seu lar diuturnamente vasculhado pelas forças policiais, a ensejar, além da inadmissível prevalência do "Direito Penal do autor"" sobre o "Direito Penal do fato", uma espécie de perpetuação da pena restritiva de liberdade, por vezes até antes que ela seja imposta.
Isso porque, mesmo depois de cumprida a sanção penal (ou até antes da condenação), todo sentenciado (ou acusado ou investigado) poderia ter sua residência vistoriada, a qualquer momento, para "averiguação" da existência de drogas, como se a anotação criminal lhe despisse para todo o sempre da presunção de inocência e da garantia da inviolabilidade domiciliar, além de lhe impingir uma marca indelével de suspeição.
As regras de experiência e o senso comum, somados às peculiaridades do caso concreto, não conferem verossimilhança à afirmação dos agentes policiais de que o paciente, depois de ser abordado e preso por porte de arma de fogo em via pública distante de sua residência, sabendo ter drogas em casa, haveria livre e espontaneamente franqueado a realização de buscas no imóvel com cães farejadores, os quais fatalmente encontrariam tais substâncias.
Em verdade, caberia aos agentes que atuam em nome do Estado demonstrar, de modo inequívoco, que o consentimento do morador foi livremente prestado, ou que, na espécie, havia em curso na residência uma clara situação de comércio espúrio de droga, a autorizar, pois, o ingresso domiciliar mesmo sem consentimento válido do morador.
Mesmo se ausente coação direta e explícita sobre o acusado, as circunstâncias de ele já haver sido preso em flagrante pelo porte da arma de fogo em via pública e estar detido, sozinho - sem a oportunidade de ser assistido por defesa técnica e sem mínimo esclarecimento sobre seus direitos -, diante de dois policiais armados, poderiam macular a validade de eventual consentimento (caso provado), em virtude da existência de um constrangimento ambiental/circunstancial. Isso porque a prova do consentimento do morador é um requisito necessário, mas não suficiente, por si só, para legitimar a diligência policial, porquanto deve ser assegurado que tal consentimento, além de existente, seja válido, isto é, livre de vícios aptos a afetar a manifestação de vontade.
O art. 152 do Código Civil, ao disciplinar a coação como um dos vícios do consentimento nos negócios jurídicos, dispõe que: "No apreciar a coação, ter-se-ão em conta o sexo, a idade, a condição, a saúde, o temperamento do paciente e todas as demais circunstâncias que possam influir na gravidade dela". Se, no Direito Civil, que envolve, em regra, direitos patrimoniais disponíveis, em uma relação equilibrada entre particulares, todas as circunstâncias que possam influir na liberdade de manifestação da vontade devem ser consideradas, com muito mais razão isso deve ocorrer no Direito Penal (lato sensu), que trata de direitos indisponíveis de um indivíduo diante do poderio do Estado, em relação manifestamente desigual.
Retomando a situação em análise, uma vez que o acusado já estava preso por porte de arma de fogo em via pública, sozinho, diante de dois policiais armados, sem a opção de ser assistido por defesa técnica e sem mínimo esclarecimento sobre seus direitos, não é crível que estivesse em plenas condições de prestar livre e válido consentimento para que os agentes de segurança estendessem a diligência com uma varredura especulativa auxiliada por cães farejadores em seu domicílio à procura de drogas, a ponto de lhe impor uma provável condenação de 5 a 15 anos de reclusão, além da pena prevista para o crime do art. 14 do Estatuto do Desarmamento, no qual já havia incorrido.
A diligência policial, no caso dos autos, a rigor, configurou verdadeira pescaria probatória (fishing expedition) no domicílio do acusado, definida pela doutrina como a "Apropriação de meios legais para, sem objetivo traçado, 'pescar' qualquer espécie de evidência, tendo ou não relação com o caso concreto. Trata-se de uma investigação especulativa e indiscriminada, sem objetivo certo ou declarado, que, de forma ampla e genérica, 'lança' suas redes com a esperança de 'pescar' qualquer prova, para subsidiar uma futura acusação ou para tentar justificar uma ação já iniciada".
Com efeito, uma vez que a arma de fogo mencionada na denúncia anônima já havia sido apreendida com o paciente em via pública (distante da residência, frise-se) e não existia nenhum indício concreto, nem sequer informação apócrifa, quanto à presença de drogas no interior do imóvel, não havia razão legítima para que os agentes de segurança se dirigissem até o local e realizassem varredura meramente especulativa à procura de entorpecentes com cães farejadores. Cabia-lhes, apenas, diante do encontro da arma de fogo em via pública, conduzir o réu à delegacia para a lavratura do auto de prisão em flagrante.
Mesmo se ausente coação direta e explícita sobre o acusado, as circunstâncias de ele já haver sido preso em flagrante pelo porte da arma de fogo em via pública e estar detido, sozinho - sem a oportunidade de ser assistido por defesa técnica e sem mínimo esclarecimento sobre seus direitos -, diante de dois policiais armados, poderiam macular a validade de eventual consentimento para a realização de busca domiciliar, em virtude da existência de um constrangimento ambiental/circunstancial.
Mesmo se ausente coação direta e explícita sobre o acusado, as circunstâncias de ele já haver sido preso em flagrante pelo porte da arma de fogo em via pública e estar detido, sozinho - sem a oportunidade de ser assistido por defesa técnica e sem mínimo esclarecimento sobre seus direitos -, diante de dois policiais armados, poderiam macular a validade de eventual consentimento (caso provado), em virtude da existência de um constrangimento ambiental/circunstancial. Isso porque a prova do consentimento do morador para a realização de busca domiciliar é um requisito necessário, mas não suficiente, por si só, para legitimá-la, porquanto deve ser assegurado que tal consentimento, além de existente, seja válido, isto é, livre de vícios aptos a afetar a manifestação de vontade.
Na doutrina e na jurisprudência norte-americanas, dedicadas há décadas a analisar o tema do consentimento do morador, a compreensão geral é a de que, para ser válido, ele "deve ser inequívoco, específico e conscientemente dado, não contaminado por qualquer truculência ou coerção.
Em Scheneckloth v. Bustamonte, 412 U.S. 218 (1973), a Suprema Corte dos Estados Unidos estabeleceu algumas orientações sobre o significado do termo "consentimento". Decidiu-se que as buscas mediante consentimento do morador (ou, como no caso, do ocupante do automóvel onde se realizou a busca) são permitidas, "mas o Estado carrega o ônus de provar 'que o consentimento foi, de fato, livre e voluntariamente dado'".
O consentimento não é livre quando de alguma forma se percebe uma coação da sua vontade. A Corte indicou que o teste da "totality of circumstances" deve ser aplicado mentalmente, considerando fatores subjetivos, relativos ao próprio suspeito (i.e., se ele é particularmente vulnerável devido à falta de estudos, baixa inteligência, perturbação mental ou intoxicação por drogas ou álcool) e fatores objetivos que sugerem coação (se estava detido, se os policiais estavam com suas armas à vista, ou se lhe disseram ter o direito de realizar a busca, ou exercitaram outras formas de sutil coerção), entre outras hipóteses que poderiam interferir no livre assentimento do suspeito. Em geral, "quando um promotor se apoia no consentimento para justificar a legalidade de uma busca, ele tem o ônus de provar que o consentimento foi, de fato, dado livre e voluntariamente".
São as seguintes as diretrizes construídas pela Suprema Corte para aferir a validade do ingresso domiciliar por agentes policiais: 1. Número de policiais; 2. Suspeito cercado de policiais; 3. Atitude dos policiais; 4. Exigência da busca; 5. Ameaças ao suspeito; 6. Hora da diligência.
O art. 152 do Código Civil, ao disciplinar a coação como um dos vícios do consentimento nos negócios jurídicos, dispõe que: "No apreciar a coação, ter-se-ão em conta o sexo, a idade, a condição, a saúde, o temperamento do paciente e todas as demais circunstâncias que possam influir na gravidade dela". De acordo com a doutrina, a declaração de vontade diz respeito à existência do negócio, mas só se poderá considerar válida tal declaração (plano da validade) se assegurada a sua total lisura.
Se, no Direito Civil, que envolve, em regra, direitos patrimoniais disponíveis, em uma relação equilibrada entre particulares, todas as circunstâncias que possam influir na liberdade da manifestação de vontade devem ser consideradas, com muito mais razão isso deve ocorrer no Direito Penal (lato sensu), que trata de direitos indisponíveis de um indivíduo diante do poderio do Estado, em relação manifestamente desigual.
É justamente essa disparidade de forças, aliás, somada à ausência de liberdade negocial concreta, que leva ao frequente reconhecimento da invalidade da manifestação de vontade da parte hipossuficiente no âmbito do Direito do Consumidor, mesmo quando externada por escrito e relativa a direitos disponíveis, em virtude da abusividade de cláusulas impostas pelo lado mais forte, nos termos, por exemplo, do art. 51, IV do Código de Defesa do Consumidor.
Não se pretende, em absoluto, relacionar a invalidade da manifestação de vontade do réu, necessariamente, à constatação de violência policial explícita e dolosa, vale dizer, à existência de coação direta. Conforme se demonstrou acima, com base na jurisprudência da Suprema Corte dos EUA, muitas vezes o constrangimento pode ser causado implicitamente pelo aparato policial ao indivíduo em virtude de circunstâncias objetivas da abordagem em cotejo com as condições pessoais do sujeito interpelado. A coação é circunstancial.
Em outras palavras, não se trata de menoscabar a valorosa atividade policial ou de presumir a prática de abuso por parte dos agentes de segurança pública, mas apenas de se ponderar o receio e a impossibilidade concreta dos cidadãos, em certos contextos fáticos, de contrariar as solicitações feitas por autoridades estatais.
Para auxiliar na compreensão desta ideia, é pertinente lembrar do chamado metus publicae potestatis, consistente no temor do particular diante de uma autoridade pública (em tradução literal "medo do poder público"), figura considerada pela doutrina para distinguir, por exemplo, o crime de extorsão do crime de concussão, tipo penal cujo núcleo "exigir" pode se configurar em razão dessa intimidação contextual/ambiental, a despeito da ausência de violência ou ameaça expressas por parte do funcionário público.
Na hipótese dos autos, uma vez que o acusado já estava preso por porte de arma de fogo em via pública, sozinho, diante de dois policiais armados, sem a opção de ser assistido por defesa técnica e sem mínimo esclarecimento sobre seus direitos, não é crível que estivesse em plenas condições de prestar livre e válido consentimento para que os agentes de segurança estendessem a diligência com uma varredura especulativa auxiliada por cães farejadores em seu domicílio à procura de drogas, a ponto de lhe impor uma provável condenação de 5 a 15 anos de reclusão, além da pena prevista para o crime do art. 14 do Estatuto do Desarmamento, no qual já havia incorrido.
O simples fato de o acusado ter antecedente por tráfico de drogas não autoriza a realização de busca domiciliar, porquanto desacompanhado de outros indícios concretos e robustos de que, nesse momento específico, ele guarda drogas em sua residência.
O art. 5º, XI, da Constituição Federal consagrou o direito fundamental à inviolabilidade do domicílio, ao dispor que a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.
O Supremo Tribunal Federal definiu, em repercussão geral (Tema 280), que o ingresso forçado em domicílio sem mandado judicial apenas se revela legítimo - a qualquer hora do dia, inclusive durante o período noturno - quando amparado em fundadas razões, devidamente justificadas pelas circunstâncias do caso concreto, que indiquem estar ocorrendo, no interior da casa, situação de flagrante delito (RE n. 603.616/RO, Rel. Ministro Gilmar Mendes, DJe 8/10/2010).
Ao julgar o REsp n. 1.574.681/RS (DJe 30/5/2017), esta colenda Sexta Turma decidiu, à unanimidade, que não se há de admitir que a mera constatação de situação de flagrância, posterior ao ingresso, justifique a medida. Se o próprio juiz só pode determinar a busca e apreensão durante o dia, e mesmo assim mediante decisão devidamente fundamentada, após prévia análise dos requisitos autorizadores da medida, não seria razoável conferir a um servidor da segurança pública total discricionariedade para, a partir de mera capacidade intuitiva, entrar de maneira forçada na residência de alguém e, então, verificar se nela há ou não alguma substância entorpecente. A ausência de justificativas e de elementos seguros a autorizar a ação dos agentes públicos, diante da discricionariedade policial na identificação de situações suspeitas relativamente à ocorrência de tráfico de drogas, pode acabar esvaziando o próprio direito à privacidade e à inviolabilidade de sua condição fundamental.
No referido julgamento, concluiu-se, portanto, que, para legitimar-se o ingresso em domicílio alheio, é necessário tenha a autoridade policial fundadas razões para acreditar, com lastro em circunstâncias objetivas, no atual ou iminente cometimento de crime no local onde a diligência vai ser cumprida.
No caso, os policiais receberam uma denúncia anônima segundo a qual o acusado estava com uma arma de fogo em via pública, razão por que o abordaram e encontraram a referida arma. Depois disso, decidiram ir até a sua residência e entraram no imóvel com a suposta autorização do paciente, oportunidade em que soltaram cães farejadores de drogas, sob a justificativa de que o réu tinha um antecedente por tráfico.
Não houve referência a prévia investigação, monitoramento ou campanas no local, a afastar a hipótese de que se tratava de averiguação de informações robustas e atuais acerca da existência de drogas naquele lugar. Da mesma forma, não se fez menção a nenhuma atitude suspeita, externalizada em atos concretos, tampouco movimentação de pessoas típica de comercialização de drogas. A denúncia anônima, aliás, nem sequer tratava da presença de entorpecentes no imóvel, mas sim do porte de arma de fogo em via pública distante do domicílio, a qual já havia sido encontrada e apreendida.
O simples fato de o acusado ter um antecedente por tráfico não autorizava a realização de busca domiciliar, porquanto desacompanhado de outros indícios concretos e robustos de que, naquele momento específico, ele guardava drogas em sua residência.
Admitir a validade desse fundamento para, isoladamente, autorizar essa diligência invasiva, implicaria, em última análise, permitir que todo indivíduo que um dia teve algum registro criminal na vida tenha seu lar diuturnamente vasculhado pelas forças policiais, a ensejar, além da inadmissível prevalência do "Direito Penal do autor"" sobre o "Direito Penal do fato", uma espécie de perpetuação da pena restritiva de liberdade, por vezes até antes que ela seja imposta.
Isso porque, mesmo depois de cumprida a sanção penal (ou até antes da condenação), todo sentenciado (ou acusado ou investigado) poderia ter sua residência vistoriada, a qualquer momento, para "averiguação" da existência de drogas, como se a anotação criminal lhe despisse para todo o sempre da presunção de inocência e da garantia da inviolabilidade domiciliar, além de lhe impingir uma marca indelével de suspeição.
As regras de experiência e o senso comum, somados às peculiaridades do caso concreto, não conferem verossimilhança à afirmação dos agentes policiais de que o paciente, depois de ser abordado e preso por porte de arma de fogo em via pública distante de sua residência, sabendo ter drogas em casa, haveria livre e espontaneamente franqueado a realização de buscas no imóvel com cães farejadores, os quais fatalmente encontrariam tais substâncias.
Em verdade, caberia aos agentes que atuam em nome do Estado demonstrar, de modo inequívoco, que o consentimento do morador foi livremente prestado, ou que, na espécie, havia em curso na residência uma clara situação de comércio espúrio de droga, a autorizar, pois, o ingresso domiciliar mesmo sem consentimento válido do morador.
Mesmo se ausente coação direta e explícita sobre o acusado, as circunstâncias de ele já haver sido preso em flagrante pelo porte da arma de fogo em via pública e estar detido, sozinho - sem a oportunidade de ser assistido por defesa técnica e sem mínimo esclarecimento sobre seus direitos -, diante de dois policiais armados, poderiam macular a validade de eventual consentimento (caso provado), em virtude da existência de um constrangimento ambiental/circunstancial. Isso porque a prova do consentimento do morador é um requisito necessário, mas não suficiente, por si só, para legitimar a diligência policial, porquanto deve ser assegurado que tal consentimento, além de existente, seja válido, isto é, livre de vícios aptos a afetar a manifestação de vontade.
O art. 152 do Código Civil, ao disciplinar a coação como um dos vícios do consentimento nos negócios jurídicos, dispõe que: "No apreciar a coação, ter-se-ão em conta o sexo, a idade, a condição, a saúde, o temperamento do paciente e todas as demais circunstâncias que possam influir na gravidade dela". Se, no Direito Civil, que envolve, em regra, direitos patrimoniais disponíveis, em uma relação equilibrada entre particulares, todas as circunstâncias que possam influir na liberdade de manifestação da vontade devem ser consideradas, com muito mais razão isso deve ocorrer no Direito Penal (lato sensu), que trata de direitos indisponíveis de um indivíduo diante do poderio do Estado, em relação manifestamente desigual.
Retomando a situação em análise, uma vez que o acusado já estava preso por porte de arma de fogo em via pública, sozinho, diante de dois policiais armados, sem a opção de ser assistido por defesa técnica e sem mínimo esclarecimento sobre seus direitos, não é crível que estivesse em plenas condições de prestar livre e válido consentimento para que os agentes de segurança estendessem a diligência com uma varredura especulativa auxiliada por cães farejadores em seu domicílio à procura de drogas, a ponto de lhe impor uma provável condenação de 5 a 15 anos de reclusão, além da pena prevista para o crime do art. 14 do Estatuto do Desarmamento, no qual já havia incorrido.
A diligência policial, no caso dos autos, a rigor, configurou verdadeira pescaria probatória (fishing expedition) no domicílio do acusado, definida pela doutrina como a "Apropriação de meios legais para, sem objetivo traçado, 'pescar' qualquer espécie de evidência, tendo ou não relação com o caso concreto. Trata-se de uma investigação especulativa e indiscriminada, sem objetivo certo ou declarado, que, de forma ampla e genérica, 'lança' suas redes com a esperança de 'pescar' qualquer prova, para subsidiar uma futura acusação ou para tentar justificar uma ação já iniciada".
Com efeito, uma vez que a arma de fogo mencionada na denúncia anônima já havia sido apreendida com o paciente em via pública (distante da residência, frise-se) e não existia nenhum indício concreto, nem sequer informação apócrifa, quanto à presença de drogas no interior do imóvel, não havia razão legítima para que os agentes de segurança se dirigissem até o local e realizassem varredura meramente especulativa à procura de entorpecentes com cães farejadores. Cabia-lhes, apenas, diante do encontro da arma de fogo em via pública, conduzir o réu à delegacia para a lavratura do auto de prisão em flagrante.
Mesmo se ausente coação direta e explícita sobre o acusado, as circunstâncias de ele já haver sido preso em flagrante pelo porte da arma de fogo em via pública e estar detido, sozinho - sem a oportunidade de ser assistido por defesa técnica e sem mínimo esclarecimento sobre seus direitos -, diante de dois policiais armados, poderiam macular a validade de eventual consentimento para a realização de busca domiciliar, em virtude da existência de um constrangimento ambiental/circunstancial.
Mesmo se ausente coação direta e explícita sobre o acusado, as circunstâncias de ele já haver sido preso em flagrante pelo porte da arma de fogo em via pública e estar detido, sozinho - sem a oportunidade de ser assistido por defesa técnica e sem mínimo esclarecimento sobre seus direitos -, diante de dois policiais armados, poderiam macular a validade de eventual consentimento (caso provado), em virtude da existência de um constrangimento ambiental/circunstancial. Isso porque a prova do consentimento do morador para a realização de busca domiciliar é um requisito necessário, mas não suficiente, por si só, para legitimá-la, porquanto deve ser assegurado que tal consentimento, além de existente, seja válido, isto é, livre de vícios aptos a afetar a manifestação de vontade.
Na doutrina e na jurisprudência norte-americanas, dedicadas há décadas a analisar o tema do consentimento do morador, a compreensão geral é a de que, para ser válido, ele "deve ser inequívoco, específico e conscientemente dado, não contaminado por qualquer truculência ou coerção.
Em Scheneckloth v. Bustamonte, 412 U.S. 218 (1973), a Suprema Corte dos Estados Unidos estabeleceu algumas orientações sobre o significado do termo "consentimento". Decidiu-se que as buscas mediante consentimento do morador (ou, como no caso, do ocupante do automóvel onde se realizou a busca) são permitidas, "mas o Estado carrega o ônus de provar 'que o consentimento foi, de fato, livre e voluntariamente dado'".
O consentimento não é livre quando de alguma forma se percebe uma coação da sua vontade. A Corte indicou que o teste da "totality of circumstances" deve ser aplicado mentalmente, considerando fatores subjetivos, relativos ao próprio suspeito (i.e., se ele é particularmente vulnerável devido à falta de estudos, baixa inteligência, perturbação mental ou intoxicação por drogas ou álcool) e fatores objetivos que sugerem coação (se estava detido, se os policiais estavam com suas armas à vista, ou se lhe disseram ter o direito de realizar a busca, ou exercitaram outras formas de sutil coerção), entre outras hipóteses que poderiam interferir no livre assentimento do suspeito. Em geral, "quando um promotor se apoia no consentimento para justificar a legalidade de uma busca, ele tem o ônus de provar que o consentimento foi, de fato, dado livre e voluntariamente".
São as seguintes as diretrizes construídas pela Suprema Corte para aferir a validade do ingresso domiciliar por agentes policiais: 1. Número de policiais; 2. Suspeito cercado de policiais; 3. Atitude dos policiais; 4. Exigência da busca; 5. Ameaças ao suspeito; 6. Hora da diligência.
O art. 152 do Código Civil, ao disciplinar a coação como um dos vícios do consentimento nos negócios jurídicos, dispõe que: "No apreciar a coação, ter-se-ão em conta o sexo, a idade, a condição, a saúde, o temperamento do paciente e todas as demais circunstâncias que possam influir na gravidade dela". De acordo com a doutrina, a declaração de vontade diz respeito à existência do negócio, mas só se poderá considerar válida tal declaração (plano da validade) se assegurada a sua total lisura.
Se, no Direito Civil, que envolve, em regra, direitos patrimoniais disponíveis, em uma relação equilibrada entre particulares, todas as circunstâncias que possam influir na liberdade da manifestação de vontade devem ser consideradas, com muito mais razão isso deve ocorrer no Direito Penal (lato sensu), que trata de direitos indisponíveis de um indivíduo diante do poderio do Estado, em relação manifestamente desigual.
É justamente essa disparidade de forças, aliás, somada à ausência de liberdade negocial concreta, que leva ao frequente reconhecimento da invalidade da manifestação de vontade da parte hipossuficiente no âmbito do Direito do Consumidor, mesmo quando externada por escrito e relativa a direitos disponíveis, em virtude da abusividade de cláusulas impostas pelo lado mais forte, nos termos, por exemplo, do art. 51, IV do Código de Defesa do Consumidor.
Não se pretende, em absoluto, relacionar a invalidade da manifestação de vontade do réu, necessariamente, à constatação de violência policial explícita e dolosa, vale dizer, à existência de coação direta. Conforme se demonstrou acima, com base na jurisprudência da Suprema Corte dos EUA, muitas vezes o constrangimento pode ser causado implicitamente pelo aparato policial ao indivíduo em virtude de circunstâncias objetivas da abordagem em cotejo com as condições pessoais do sujeito interpelado. A coação é circunstancial.
Em outras palavras, não se trata de menoscabar a valorosa atividade policial ou de presumir a prática de abuso por parte dos agentes de segurança pública, mas apenas de se ponderar o receio e a impossibilidade concreta dos cidadãos, em certos contextos fáticos, de contrariar as solicitações feitas por autoridades estatais.
Para auxiliar na compreensão desta ideia, é pertinente lembrar do chamado metus publicae potestatis, consistente no temor do particular diante de uma autoridade pública (em tradução literal "medo do poder público"), figura considerada pela doutrina para distinguir, por exemplo, o crime de extorsão do crime de concussão, tipo penal cujo núcleo "exigir" pode se configurar em razão dessa intimidação contextual/ambiental, a despeito da ausência de violência ou ameaça expressas por parte do funcionário público.
Na hipótese dos autos, uma vez que o acusado já estava preso por porte de arma de fogo em via pública, sozinho, diante de dois policiais armados, sem a opção de ser assistido por defesa técnica e sem mínimo esclarecimento sobre seus direitos, não é crível que estivesse em plenas condições de prestar livre e válido consentimento para que os agentes de segurança estendessem a diligência com uma varredura especulativa auxiliada por cães farejadores em seu domicílio à procura de drogas, a ponto de lhe impor uma provável condenação de 5 a 15 anos de reclusão, além da pena prevista para o crime do art. 14 do Estatuto do Desarmamento, no qual já havia incorrido.