REsp 2.026.837-SC

STJ Quinta Turma

Recurso Especial

Relator: Messod Azulay Neto

Julgamento: 07/11/2023

Publicação: 13/11/2023

Tese Jurídica Simplificada

Para fins de retroatividade da lei penal mais benéfica, não há combinação vedada de leis quando duas leis tratarem de temas distintos, ainda que tenham sido modificadas por uma lei comum. 

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Nossos Comentários

Retroatividade da lei penal mais benéfica e vedação da lex tertia

Sobre o tema da norma penal e sua aplicação no tempo, tem-se a regra da aplicação da lei vigente à época da conduta, com exceção da lei mais benéfica posterior. 

A lei posterior que beneficie o agente retroage e é capaz, inclusive, de desconstituir a coisa julgada.

Essa é a previsão da Constituição Federal:

Art. 5º. [...]

XL - a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;

E no mesmo sentido, o Código Penal:

Lei penal no tempo

Art. 2º - Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória.

Parágrafo único - A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado.

Sobre o tema, os Tribunais foram provocados a decidir se seria possível a combinação de leis para favorecer o agente. Assim, por exemplo, se uma lei nova é apenas benéfica em parte, é possível combiná-la com a parte mais benéfica da lei anterior para criar uma terceira norma em benefício do agente?

A discussão sobre a “lex tertia” ocorreu tanto no STJ quanto no STF a partir do crime de tráfico de drogas que antes era previsto na lei 6.368/1976 e passou a ser elencado na lei 11.343/2016.

Em síntese, a lei 6.368/76 estabelecia uma pena de 3 a 15 anos de prisão para o crime, sem, contudo, prever qualquer hipótese de diminuição de pena. Com a nova lei de drogas (11.343/06) a pena passou a ser de 5 a 15 anos de prisão. Dessa forma, a situação foi agravada em razão do aumento da pena mínima. No entanto, a nova lei de drogas também passou a dispor sobre diminuição da pena se o réu for primário, tiver bons antecedentes, não se dedicar a atividades criminosas e não integrar qualquer organização criminosa. 

Nesse contexto, seria possível aplicar a lei anterior (no que diz respeito à pena mínima) juntamente com a lei posterior (no que diz respeito à diminuição da pena) para beneficiar os réus e condenados pelo crime de tráfico de drogas?

O STJ entendeu que não seria cabível essa combinação, pois o Judiciário não pode legislar e criar uma terceira norma. Veja-se a Súmula 501 da Corte:

É cabível a aplicação retroativa da Lei n. 11.343/2006, desde que o resultado da incidência das suas disposições, na íntegra, seja mais favorável ao réu do que o advindo da aplicação da Lei n. 6.368/1976, sendo vedada a combinação de leis.

O STF também entendeu que essa combinação não seria possível:

Não é possível a conjugação de partes mais benéficas das referidas normas, para criar-se uma terceira lei, sob pena de violação aos princípios da legalidade e da separação de Poderes. (RE 600.817-MS, Plenário, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, julgado em 07/11/2013). 

Por isso, entende-se que é vedada a combinação de leis em benefício do réu ou condenado.

Caso concreto

O Pacote Anticrime (lei 13.964/2019) modificou os patamares da execução de pena, especificamente para progressão de regime, na Lei de Execução Penal (LEP). 

Antes das alterações, segundo a LEP, a progressão de regime era possível quando o agente cumprisse 1/6 da pena, sendo reincidente ou não. O requisito era objetivo. 

Art. 112. A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e ostentar bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento, respeitadas as normas que vedam a progressão.  

A lei de crimes hediondos também previa requisito objetivo para progressão de regime: 

  • Réu primário: 2/5 da pena; 
  • Réu reincidente (genérico ou específico): 3/5 da pena;

Veja-se:

Art. 2º [...]

§ 2º. A progressão de regime, no caso dos condenados pelos crimes previstos neste artigo, dar-se-á após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente, observado o disposto nos §§ 3º e 4º do art. 112 da Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal).     (Redação dada pela Lei nº 13.769, de 2018)(Revogado pela Lei nº 13.964, de 2019)

Após as alterações do Pacote Anticrime (lei 13.964/2019), o artigo 112 da LEP passou a prever diferentes frações de cumprimento da pena para progressão de regime (requisito objetivo) a partir de circunstâncias específicas do agente (requisitos subjetivos). 

No caso concreto, o réu foi condenado pelos crimes de lesão corporal no contexto de violência doméstica e tentativa de homicídio qualificado (crime equiparado a hediondo). É relevante destacar que o réu é reincidente em crime cometido com violência ou grave ameaça. Os crimes foram praticados antes das alterações do Pacote Anticrime (lei 13.964/2019) e o réu já estava cumprindo pena quando a lei 13.964/2019 entrou em vigência. 

Nesse contexto, para o caso concreto, sabe-se que se a modificação dos parâmetros de progressão de regime forem favoráveis ao condenado, é possível a aplicação. Por outro lado, se forem desfavoráveis, não é cabível a retroatividade da lei.

Para o delito de lesão no contexto de violência doméstica, as alterações do  Pacote Anticrime  quanto à progressão de regime são desfavoráveis ao condenado. Por isso, não cabe a retroação da lei. Veja-se:

  Redação originária da LEP Redação da LEP após alterações pelo Pacote Anticrime 
Pena a ser cumprida para progressão de regime  1/6 (cerca de 17%) 30%
Previsão legal Art. 112. A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e ostentar bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento, respeitadas as normas que vedam a progressão.

Art. 112. A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos:

[...]

IV - 30% (trinta por cento) da pena, se o apenado for reincidente em crime cometido com violência à pessoa ou grave ameaça;

No entanto, em relação à tentativa de homicídio qualificado, as alterações do Pacote Anticrime são favoráveis ao condenado. Veja-se:

  Redação originária da lei de crimes hediondos Redação da LEP depois das alterações pelo Pacote Anticrime
Pena a ser cumprida para progressão de regime 3/5 (cerca de 60%) 40% 
Previsão legal

Art. 2º.

[...]

§ 2º A progressão de regime, no caso dos condenados pelos crimes previstos neste artigo, dar-se-á após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente, observado o disposto nos §§ 3º e 4º do art. 112 da Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal).

 

Observação nº 1: Esse dispositivo foi revogado pelo  Pacote Anticrime. Por isso, passou a ser aplicável a LEP.

Art. 112. A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos:

[...]

V - 40% (quarenta por cento) da pena, se o apenado for condenado pela prática de crime hediondo ou equiparado, se for primário;

 

Observação nº 2: Para o reincidente genérico e o primário, aplica-se esse mesmo inciso, pois são equiparados, conforme Tema 1084 do STJ.

 

Observação nº 3: Não é aplicável o percentual de 50% (inciso VI, alínea ‘a’) porque não houve resultado morte no caso concreto. 

Ocorre que, na linha do entendimento até então firmado pelo STJ e STF, o Ministério Público defendeu que seria cabível a aplicação integral da lei nova para os dois crimes ou a aplicação integral da lei anterior para os dois crimes, sem combinação das leis. 

Em outras palavras, no entender do Ministério Público, não seria cabível a combinação de leis para os dois crimes. 

Nesse caso, há combinação de leis (lex tertia)?

O STJ entendeu que não se trata de combinação de leis. Os crimes são distintos. Há duas leis que tratam de temas distintos: a primeira trata do crime com violência em âmbito das relações domésticas e a segunda trata do crime hediondo e equiparado. Ainda que as duas leis tenham sido modificadas pelo Pacote Anticrime, os temas são diversos. 

Nesse mesmo sentido, há decisões do STJ e STF:

Não há que se falar em indevida combinação de leis quando se está diante de duas leis que tratam de temas distintos  e que, circunstancialmente, vieram a ser alteradas pela mesma norma infraconstitucional superveniente. Hipótese das alterações promovidas pela Lei 13.964/19 no art. 112 da LEP e no art. 1º, II, da Lei 8.072/1990.  (HC n. 617.922/SP, Quinta Turma, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca , DJe de 11/2/2021).

Por esta razão, não incide, no caso, o óbice jurisprudencial que veda a combinação de normas ou de leis, consistente na criação de uma lex tertia. Trata-se de regimes de progressão de pena que receberam, do legislador, tratamento legal independente, cada qual (crimes comuns e crimes hediondos) com seu  conjunto específico de normas de regência. (RHC 221.271 AgR, Rel. Min. Luiz Fux, STF, Primeira Turma, DJe de 15/5/2023).

Portanto, segundo o STJ, não configura combinação de leis a aplicação do requisito objetivo para a progressão de regime previsto na antiga redação do artigo 112 da LEP, em relação ao crime comum, e a aplicação retroativa do Pacote Anticrime para reger apenas a progressão do crime hediondo, quando ambos os delitos compõem uma mesma execução penal e foram praticados em momento anterior à edição da Lei 13.964/2019.


Tese Jurídica Oficial

Não configura combinação de leis a aplicação do requisito objetivo para a progressão de regime previsto na antiga redação do art. 112 da Lei de Execução Penal, em relação ao crime comum, e a aplicação retroativa do Pacote Anticrime para reger apenas a progressão do crime hediondo, quando ambos os delitos compõem uma mesma execução penal e foram praticados em momento anterior à edição da Lei n. 13.964/2019.

A controvérsia consiste em determinar se é possível aplicar a redação anterior do art. 112 da Lei de Execução Penal para que a progressão de regime atinente ao crime comum se dê com 1/6 do cumprimento da pena e, ao mesmo tempo, aplicar a tese do Tema 1084 desta Corte, decorrente do Pacote Anticrime, para que o requisito objetivo a ser aferido para o crime hediondo seja de 40%.

Com efeito, é mais adequado que os cálculos para a progressão de regime sejam feitos de modo independente, quando houver, em uma mesma execução, crimes comuns e hediondos. Isso porque a aplicação de uma só lei, nesse caso, contraria o princípio da não retroatividade da lei penal maléfica, pois o crime comum será regido por norma mais rigorosa, que leva em consideração parâmetros não contemplados na lei anterior, como a reincidência e o cometimento de violência à pessoa ou grave ameaça.

Soma-se a isso o argumento ventilado no HC 617.922/SP, oportunidade em que a Quinta Turma sinalizava a possibilidade de aderir ao entendimento da Sexta Turma no sentido de que "(n)ão há que se falar em indevida combinação de leis quando se está diante de duas leis que tratam de temas distintos e que, circunstancialmente, vieram a ser alteradas pela mesma norma infraconstitucional superveniente". De fato, a mens legis é de que os crimes hediondos recebam tratamento distinto dos comuns, ainda que, por questões práticas, o legislador tenha optado por reunir os temas em um mesmo dispositivo de lei.

Os princípios da individualização da pena e da isonomia recomendam que os delitos comuns e hediondos recebam tratamentos distintos. Em sendo o requisito temporal para a progressão de regime de ordem objetiva, causa perplexidade a adoção de um critério que permite que coautores sejam tratados de modo diferente no curso da execução penal, a despeito de terem cometido o mesmo fato, apenas em razão de uma eventualidade envolvendo a sucessão de leis no tempo.

Por fim, registre-se que a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal autorizou a aplicação de leis distintas para reger a progressão de regime de crimes comuns e hediondos, por entender que essa solução é a que melhor se alinha às diretrizes estabelecidas pela Constituição da República.

"Por esta razão, não incide, no caso, o óbice jurisprudencial que veda a combinação de normas ou de leis, consistente na criação de uma lex tertia. Trata-se de regimes de progressão de pena que receberam, do legislador, tratamento legal independente, cada qual (crimes comuns e crimes hediondos) com seu conjunto específico de normas de regência. (RHC 221.271 AgR, Rel. Min. Luiz Fux, STF, Primeira Turma, DJe de 15/5/2023).

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