REsp 1.953.602-SP

STJ Terceira Seção

Recurso Especial

Repetitivo

Outros Processos nesta Decisão

REsp 1.987.628-SP REsp 1.986.619-SP REsp 1.987.651-RS

Relator: Reynaldo Soares da Fonseca

Julgamento: 11/06/2025

Publicação: 05/08/2025

Tese Jurídica Simplificada

O reconhecimento de pessoas, fotográfico ou presencial, exige cumprimento do art. 226 do CPP, sob pena de invalidade. Deve haver alinhamento com pessoas semelhantes, sendo a discrepância relevante prejudicial à prova. Trata-se de prova irrepetível, pois vícios iniciais contaminam novos reconhecimentos. A autoria pode ser comprovada por provas independentes, e o reconhecimento válido deve ser compatível com o conjunto probatório. O procedimento formal é dispensável quando a pessoa já era previamente conhecida pelo reconhecedor.

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Tese Jurídica Oficial

 1) As regras postas no art. 226 do CPP são de observância obrigatória tanto em sede inquisitorial quanto em juízo, sob pena de invalidade da prova destinada a demonstrar a autoria delitiva, em alinhamento com as normas do Conselho Nacional de Justiça sobre o tema. O reconhecimento fotográfico e/ou pessoal inválido não poderá servir de lastro nem a condenação nem a decisões que exijam menor rigor quanto ao standard probatório, tais como a decretação de prisão preventiva, o recebimento de denúncia ou a pronúncia. 

2) Deverão ser alinhadas pessoas semelhantes ao lado do suspeito para a realização do reconhecimento pessoal. Ainda que a regra do inciso II do art. 226 do CPP admita a mitigação da semelhança entre os suspeitos alinhados quando, justificadamente, não puderem ser encontradas pessoas com o mesmo fenótipo, eventual discrepância acentuada entre as pessoas comparadas poderá esvaziar a confiabilidade probatória do reconhecimento feito nessas condições. 

3) O reconhecimento de pessoas é prova irrepetível, na medida em que um reconhecimento inicialmente falho ou viciado tem o potencial de contaminar a memória do reconhecedor, esvaziando de certeza o procedimento realizado posteriormente com o intuito de demonstrar a autoria delitiva, ainda que o novo procedimento atenda os ditames do art. 226 do CPP. 

4) Poderá o magistrado se convencer da autoria delitiva a partir do exame de provas ou evidências independentes que não guardem relação de causa e efeito com o ato viciado de reconhecimento. 

5) Mesmo o reconhecimento pessoal válido deve guardar congruência com as demais provas existentes nos autos. 6) Desnecessário realizar o procedimento formal de reconhecimento de pessoas, previsto no art. 226 do CPP, quando não se tratar de apontamento de indivíduo desconhecido com base na memória visual de suas características físicas percebidas no momento do crime, mas, sim, de mera identificação de pessoa que o depoente já conhecia anteriormente 

Cinge-se a controvérsia a saber se a determinação contida no art. 226 do Código de Processo Penal, constitui norma de observância obrigatória sob pena de nulidade e qual o seu alcance. 

Sobre o tema, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça vinha entendendo que a eventual inobservância das formalidades previstas no artigo 226 do Código de Processo Penal para o reconhecimento não corresponderia a causa de nulidade, uma vez que não se trata de exigências, mas de meras recomendações a serem observadas na implementação da medida. 

Rompendo com a posição jurisprudencial majoritária até então, a Sexta Turma do STJ, por ocasião do julgamento do HC n. 598.886/SC, julgado em 27/10/2020, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, propôs nova interpretação do art. 226 do CPP, segundo a qual a inobservância do procedimento descrito no mencionado dispositivo legal torna inválido o reconhecimento da pessoa suspeita e não poderá servir de lastro a eventual condenação, mesmo se confirmado o reconhecimento em juízo. 

No mesmo sentido, em recente julgado, a Quinta Turma do STJ, à unanimidade, reconheceu que, "Não obstante a relevância da palavra da vítima, em especial em crimes sexuais, não é possível manter a condenação do paciente com fundamento em reconhecimentos viciados, convalidados pela existência de outros reconhecimentos realizados com os mesmos vícios, e desconstituídos por meio de prova pericial que não identificou o perfil genético do paciente nos materiais coletados das vítimas" (PExt no HC n. 870.636/SP, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 14/5/2024, DJe de 20/5/2024.

 A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, por sua vez, de maneira consistente, vem entendendo que "O reconhecimento fotográfico realizado sem a observância das formalidades do art. 226 do CPP não constitui prova válida para sustentar a autoria delitiva, especialmente quando realizado de forma isolada e sem acompanhamento de outras provas robustas" (HC 245.814 AgR, Relator: Edson Fachin, Segunda Turma, julgado em 27/11/2024, 5/12/2024). 

De outro lado, há julgados recentes da Primeira Turma admitindo a ratificação, em juízo, de reconhecimento fotográfico falho, desde que valorado com o restante do conjunto probatório. 

Diante da divergência, mais recentemente, o plenário do STF afetou o ARE 1.467.470/RG, para julgamento no rito de repercussão geral (Tema 1.380), cuja controvérsia discute se o reconhecimento de pessoa realizado em desconformidade com o art. 226 do Código de Processo Penal é inválido por afronta às garantias constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e da vedação às provas ilícitas. 

No estudo do tema, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou a Resolução n. 484, de 19/12/2022, que "estabelece diretrizes para a realização do reconhecimento de pessoas em procedimentos e processos criminais e sua avaliação no âmbito do Poder Judiciário". 

A resolução é resultado do trabalho do grupo criado pelo CNJ em 2021, e que produziu, em 2024, um Manual de Procedimentos de Reconhecimento de Pessoas conforme a Resolução CNJ n. 484/2022, que se debruça, detalhadamente, tanto sobre dados indicativos de erros no reconhecimento de pessoas no Brasil e no mundo quanto sobre os processos e variáveis que afetam a memória humana identificados em estudos especializados sobre o tema. 

A partir dos aprofundados estudos realizados pelo grupo de trabalho do Conselho Nacional de Justiça ou aqueles já mencionados no leading case da Sexta Turma do STJ, pode-se concluir que a rigorosa observância do art. 226 do CPP não é mero formalismo estéril; pelo contrário, possui fundamentação técnico-científica sólida e respaldo em políticas legais de redução de erros. 

Nesse cenário, a observância obrigatória das disposições postas no art. 226 do CPP se coaduna com uma compreensão do processo penal de matiz garantista voltada para a busca da verdade real de forma mais segura e precisa. Funciona como uma garantia procedimental alinhada com os princípios constitucionais da ampla defesa e do devido processo legal. 

Sob o ângulo técnico-científico, a formalidade do art. 226 se justifica como um meio de controle de qualidade da prova testemunhal. É uma resposta normativa às vulnerabilidades inerentes da memória humana. A falta de cumprimento dessas cautelas aumenta exponencialmente a chance de identificação equivocada, podendo levar um inocente à prisão - resultado diametralmente oposto à finalidade do processo penal. 

Ademais, um ponto científico crucial apontado pela Sexta Turma do STJ é a irrepetibilidade cognitiva do reconhecimento. Diferentemente de certas provas (v.g., perícias) que podem ser refeitas, o ato de reconhecimento não pode ser simplesmente reproduzido depois sem o risco de viés, porque a primeira exposição do suspeito à testemunha altera a memória desta. 

Estudos mostram que, após um reconhecimento, a testemunha pode incorporar a imagem do suspeito em sua memória como sendo a do autor - mesmo que estivesse incerta antes -, fenômeno conhecido como "efeito do reforço da confiança". Assim, se a primeira identificação foi errônea ou conduzida de forma inadequada, todas as subsequentes estarão comprometidas.

Esse é o fundamento científico da regra jurisprudencial que veda convalidação posterior: a contaminação da memória é irreversível, motivo pelo qual a única forma de garantir justiça é prevenir o erro na origem, seguindo o procedimento adequado. 

Quanto aos efeitos processuais e probatórios da inobservância do art. 226 do CPP, o reconhecimento fotográfico e/ou pessoal irregular é prova inválida, devendo ser desconsiderada pelo julgador, na formação de seu convencimento. 

Assim, mesmo diante de posterior ratificação em juízo, com a observância dos ditames do art. 226 do CPP, o reconhecimento inicialmente viciado tem o potencial de macular a percepção futura do identificador, pelo que esvazia o seu grau de certeza. 

E, mais recentemente, a Quinta Turma do STJ, no AgRg no HC 819.550/SP, publicado em 6/11/2024, corroborando a tese, afirmou que "A nulidade do reconhecimento inicial contamina os subsequentes, conforme entendimento consolidado por esta Corte, especialmente quando não há outras provas independentes que confirmem a autoria delitiva". 

Por outro lado, se vítima e/ou testemunha já conheciam previamente o suspeito de cometimento do delito e são capazes de identificá-lo, o reconhecimento pessoal é desnecessário. 

No que concerne à possibilidade de decretação de prisão preventiva, recebimento de denúncia e pronúncia com base em reconhecimento fotográfico e/ou pessoal efetuado em descompasso com o art. 226 do CPP, há precedentes da Quinta e da Sexta Turma afirmando que "A decisão de pronúncia encerra simples juízo de admissibilidade da acusação, satisfazendo-se, tão somente, pelo exame da ocorrência do crime e de indícios de sua autoria, não demandando juízo de certeza necessário à sentença condenatória", bem como que "O reconhecimento fotográfico, ainda que questionável, é considerado indício mínimo de autoria para justificar a prisão cautelar". 

No entanto, diante das ponderações trazidas tanto pelo julgado da Sexta Turma do STJ no HC 712.781/RJ quanto no precedente da Segunda Turma do STF no RHC 206.486/SP, tem-se que, com efeito, o reconhecimento (fotográfico e/ou pessoal) comprovadamente efetuado em descompasso com as diretivas do art. 226 do CPP não é apto, de forma isolada e por si só, a consubstanciar indício suficiente de autoria para lastrear decretação de prisão preventiva, recebimento de denúncia ou pronúncia. 

Quanto à sentença condenatória, o reconhecimento de pessoa, presencialmente ou por fotografia, somente se presta a identificar o réu e a consubstanciar evidência da autoria delitiva se observadas as formalidades previstas no art. 226 do CPP e após sua submissão ao crivo do contraditório e da ampla defesa, na fase judicial. 

Ademais, diante das várias nuances capazes de afetar a memória humana, é de todo conveniente que mesmo o reconhecimento efetuado com observância aos preceitos do art. 226 do CPP seja confrontado com as demais evidências existentes nos autos, de modo a atenuar a fragilidade epistêmica que caracteriza a prova produzida por meio do reconhecimento pessoal. 

Cumpre ressalvar, contudo, que "É possível que o julgador, destinatário das provas, convença-se da autoria delitiva a partir de outras provas que não guardem relação de causa e efeito com o ato do reconhecimento pessoal falho, porquanto, sem prejuízo da nova orientação, não se pode olvidar que vigora no sistema probatório brasileiro o princípio do livre convencimento motivado, desde que existam provas produzidas em contraditório judicial" (AREsp 2.852.641/SP, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 1/4/2025, DJEN 10/4/2025). 

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