AgRg no AREsp 2.693.820-SP

STJ Quinta Turma

Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial

Relator: Ribeiro Dantas

Julgamento: 18/03/2025

Publicação: 26/03/2025

Tese Jurídica Simplificada

Para a configuração do crime de prevaricação, não basta ser negligente ou acomodado. É preciso comprovar que a intenção específica do funcionário era obter uma vantagem pessoal ou agir por sentimento próprio.

Vídeo

Nossos Comentários

Contexto

Dois delegados foram condenadas pelo crime de prevaricação (Art. 319 do Código Penal).

A condenação se baseou em várias omissões e falhas graves na delegacia onde trabalhavam (DISE de Campinas) entre 2015 e 2018:

  • Não investigar crimes: Deixaram de dar andamento a centenas de boletins de ocorrência registrados, mesmo em casos com autoria conhecida ou grande chance de solução. Muitos desses casos simplesmente ficaram parados, sem instauração de inquérito.
  • Não incinerar drogas: Acumularam irregularmente na delegacia, por anos, uma quantidade enorme de drogas apreendidas (cerca de 5 toneladas), sem tomar as providências para sua destruição (incineração), apesar de laudos toxicológicos já estarem prontos.
  • Não destinar armas/munições: Não deram o destino correto a mais de 130 armas, munições e outros objetos apreendidos.
  • Omissões em Boletins: Em uma diligência específica, um dos delegados deixou de registrar corretamente um fato em um boletim de ocorrência.
  • Uso de viatura / Frequência à academia: Um dos delegados foi acusado de frequentar academia e clube social durante o horário de expediente, usando viatura descaracterizada.

Uma decisão monocrática anterior do STJ não havia permitido que o Recurso Especial de um deles fosse analisado (não conheceu do recurso).

O recorrente, então, interpôs o Agravo Regimental (AgRg) em questão, pedindo que a Turma reconsiderasse a decisão anterior e analisasse seu Recurso Especial. Seus principais argumentos eram que ele não cometeu prevaricação por faltar o "dolo específico" (a intenção específica exigida pelo crime), além de questionar outros pontos como a pena e a perda do cargo.

Controvérsia

A questão central para o STJ resolver era:

  • As condutas dos delegados (deixar de investigar casos, não destruir drogas e armas, ser omisso, frequentar academia no expediente), embora configurem falhas graves, desídia ou falta de compromisso, caracterizam o crime de prevaricação (Art. 319 do Código Penal)?
  • Especificamente: Para configurar prevaricação, basta a simples omissão ou negligência no cumprimento do dever, ou é necessário comprovar que o delegado agiu (ou deixou de agir) com a intenção específica (dolo específico) de "satisfazer interesse ou sentimento pessoal"?

Julgamento

A Quinta Turma do STJ, por unanimidade, deu provimento ao recurso e absolve o delegado do crime de prevaricação. A lógica principal foi

  • Dolo Específico é Requisito Essencial: O crime de prevaricação (Art. 319) exige, para sua configuração, um elemento subjetivo especial: o dolo específico. Não basta que o funcionário público deixe de fazer o que devia; é preciso que ele faça isso com a finalidade específica de satisfazer um interesse pessoal (ex: beneficiar a si mesmo ou a um amigo, prejudicar um inimigo) ou um sentimento pessoal (ex: vingança, favoritismo, preguiça extrema que se torna um fim em si mesma).
  • Negligência, Desídia ou Comodismo Não São Suficientes: O STJ entendeu que a mera negligência, o desleixo, a falta de compromisso (descompromisso), a preguiça (comodismo) ou a ineficiência administrativa (desídia), embora sejam condutas reprováveis e possam gerar punições administrativas, não configuram, por si sós, o dolo específico exigido para o crime de prevaricação.
  • Análise do Caso Concreto: O STJ observou que o próprio acórdão do Tribunal de origem, ao descrever a conduta dos delegados, apontou que ela foi pautada por "comodismo" e "descompromisso".
  • Falta de Prova do Interesse Pessoal: Não havia nos autos provas concretas e objetivas que demonstrassem que os delegados agiram (ou se omitiram) com o propósito específico de satisfazer um interesse ou sentimento pessoal. As falhas, embora graves e generalizadas, pareciam mais ligadas à má gestão, ineficiência e desleixo do que a uma motivação pessoal específica (como beneficiar ou prejudicar alguém intencionalmente). O uso da viatura ou a ida à academia, isoladamente, também não foram suficientes para caracterizar esse dolo específico do Art. 319.
  • Atipicidade da Conduta: Como o dolo específico (satisfazer interesse ou sentimento pessoal) não foi comprovado, a conduta dos delegados, por mais errada que fosse administrativamente, foi considerada atípica para o crime de prevaricação. Ou seja, ela não se encaixava perfeitamente na descrição legal do crime.
  • Jurisprudência: A decisão se baseou na jurisprudência já consolidada do STJ (citando o HC 390.950/SP), que faz essa distinção clara entre a mera desídia/negligência e o dolo específico da prevaricação.
  • Demais Questões Prejudicadas: Como a conduta foi considerada atípica (não sendo crime de prevaricação), as outras alegações da defesa (sobre nulidade processual, pena, perda do cargo) ficaram prejudicadas, ou seja, perderam o objeto e não precisaram ser analisadas.

Principais Pontos da Decisão

  1. O crime de prevaricação (Art. 319) só ocorre se o funcionário público age (ou deixa de agir) com a intenção específica de satisfazer um interesse ou sentimento pessoal.
  2. Mera negligência, preguiça ("comodismo"), falta de compromisso ou ineficiência administrativa, por si sós, não são suficientes para caracterizar o crime de prevaricação.
  3. É preciso provar, de forma concreta e objetiva, que o agente agiu movido por esse interesse ou sentimento pessoal.
  4. No caso, as ações dos delegados foram consideradas "atípicas" para o crime de prevaricação por falta de comprovação desse dolo específico. Assim, o delegado recorrente foi absolvido da acusação de prevaricação.

Em resumo, para a configuração do crime de prevaricação, não basta ser negligente ou acomodado. É preciso comprovar que a intenção específica do funcionário era obter uma vantagem pessoal ou agir por sentimento próprio.


Tese Jurídica Oficial

Para a configuração do crime de prevaricação exige-se o dolo específico de satisfazer interesse ou sentimento pessoal de forma objetiva e concreta, não sendo suficiente a mera negligência, comodismo ou descompromisso.

O crime de prevaricação, previsto no art. 319 do Código Penal, exige para sua configuração o dolo específico de "satisfazer interesse ou sentimento pessoal", não sendo suficiente a mera negligência, comodismo ou descompromisso. É imprescindível que o agente se abstenha de praticar ato de ofício "para satisfazer interesse ou sentimento pessoal" de maneira objetiva e concreta.

No caso analisado, o Tribunal de origem condenou os réus, delegados de polícia, por não adotarem providências necessárias para a apuração de crimes, não incinerarem entorpecentes e não destinarem adequadamente armas e munições, além de omissões em boletins de ocorrência.

Dessa forma, nota-se que a narrativa aponta para uma conduta pautada no comodismo e descompromisso, situações que, embora caracterizem desídia, não evidenciam a satisfação de um interesse pessoal específico ou um objetivo concreto de vantagem pessoal ou favorecimento indevido.

A ausência de provas objetivas e concretas de que o réu agiu com o propósito de satisfazer interesse pessoal impede a manutenção da condenação, nos termos da jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça.

Informativos Relacionados