STJ - Sexta Turma
REsp 1.972.092-SP
Recurso Especial
Relator: Rogerio Schietti Cruz
Julgamento: 14/06/2022
Publicação: 14/06/2022
STJ - Sexta Turma
REsp 1.972.092-SP
Tese Jurídica
É cabível a concessão de salvo-conduto para o plantio e o transporte de Cannabis Sativa para fins exclusivamente terapêuticos, com base em receituário e laudo subscrito por profissional médico especializado, e chancelado pela Anvisa.
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Resumo Oficial
Discute-se o cabimento de habeas corpus preventivo visando a concessão de salvo-conduto para o plantio e o transporte de Cannabis Sativa, como objetivo de extração de substância necessária para a produção artesanal dos medicamentos prescritos para fins de tratamento de saúde.
Inicialmente, vale destacar que o art. 33, caput, da Lei n. 11.343/2006 apresenta-se como norma penal em branco, porque define o crime de tráfico a partir da prática de dezoito condutas relacionadas a drogas - importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer -, sem, no entanto, trazer a definição do elemento do tipo "drogas".
A definição do que sejam "drogas", capazes de caracterizar os delitos previstos na Lei n. 11.343/2006, advém da Portaria n. 344/1998, da Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde. A Cannabis Sativa integra a "Lista E" da referida portaria, que, em última análise, a descreve como planta que pode originar substâncias entorpecentes e/ou psicotrópicas.
Uma vez que é possível, ao menos em tese, que os pacientes tenham suas condutas enquadradas no art. 33, § 1º, da Lei n. 11.343/2006, punível com pena privativa de liberdade, é indiscutível o cabimento de habeas corpus para os fins por eles almejados: concessão de salvo-conduto para o plantio e o transporte de Cannabis Sativa, da qual se pode extrair a substância necessária para a produção artesanal dos medicamentos prescritos para fins de tratamento de saúde.
Também há o risco, pelo menos hipotético, de que as autoridades policiais tentem qualificar a pretendida importação de sementes de Cannabis no tipo penal de contrabando (art. 334-A do CP), circunstância que reforça a possibilidade de que os pacientes se socorram do habeas corpus para o fim pretendido, notadamente porque receberam intimação da Polícia Federal para serem ouvidos em autos de inquérito policial. Ações pelo rito ordinário e outros instrumentos de natureza cível podem até tratar dos desdobramentos administrativos da questão trazida a debate, mas isso não exclui o cabimento do habeas corpus para impedir ou cessar eventual constrangimento à liberdade dos interessados.
Se para pleitear aos entes públicos o fornecimento e o custeio de medicamento por meio de ação cível, o pedido pode ser amparado em laudo do médico particular que assiste a parte (STJ, EDcl no REsp n. 1.657.156/RJ, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Seção, DJe 21/09/2018), não há razão para se fazer exigência mais rigorosa na situação em que a pretensão da defesa não implica nenhum gasto financeiro ao erário.
Há, na hipótese, vasta documentação médica atestando a necessidade de o tratamento médico dos pacientes ser feito com medicamentos à base de canabidiol, inclusive com relato de expressivas melhoras na condição de saúde deles e esclarecimento de que diversas vias tradicionais de tratamento foram tentadas, mas sem sucesso, circunstância que reforça ser desnecessária a realização de dilação probatória com perícia médica oficial.
Não há falar que a defesa pretende, mediante o habeas corpus, tolher o poder de polícia das autoridades administrativas. Primeiro, porque a própria Anvisa (Agência de Vigilância Sanitária), por meio de seu diretor, afirmou que a regulação e a autorização do cultivo doméstico de plantas, quaisquer que sejam elas, não fazem parte do seu escopo de atuação. Segundo, porque não se objetiva nesta demanda obstar a atuação das autoridades administrativas, tampouco substituí-las em seu mister, mas, apenas, evitar que os pacientes sejam alvo de atos de investigação criminal pelos órgãos de persecução penal.
Embora a legislação brasileira possibilite, há mais de 40 anos, a permissão, pelas autoridades competentes, de plantio, cultura e colheita de Cannabis exclusivamente para fins medicinais ou científicos (art. 2º, parágrafo único, da Lei n. 11.343/2006; art. 2º, § 2º, da Lei n. 6.368/1976), fato é que até hoje a matéria não tem regulamentação ou norma específica, o que bem evidencia o descaso, ou mesmo o desprezo - quiçá por razões morais ou políticas - com a situação de uma número incalculável de pessoas que poderiam se beneficiar com tal regulamentação.
Em 2019, a Diretoria Colegiada da Anvisa, ao julgar o processo que teve como objetivo dispor sobre os requisitos técnicos e administrativos para o cultivo da planta Cannabis exclusivamente para fins medicinais ou científicos, decidiu pelo arquivamento da proposta de resolução. Ficou claro, portanto, que o posicionamento da Diretoria Colegiada da Anvisa, à época, era o de que a autorização para cultivo de plantas que possam originar substâncias sujeitas a controle especial, entre elas a Cannabis Sativa, é da competência do Ministério da Saúde, e que, para atuação da Anvisa, deveria haver uma delegação ou qualquer outra tratativa oficial, de modo a atribuir a essa agência reguladora a responsabilidade e a autonomia para definir, sozinha, o modelo regulatório, a autorização, a fiscalização e o controle dessa atividade de cultivo.
O Ministério da Saúde, por sua vez, a quem a Anvisa afirmou competir regular o cultivo doméstico de Cannabis, indicou que não pretende fazê-lo, em resposta à Consulta Dirigida sobre as propostas de regulamentação do uso medicinal e científico da planta Cannabis, assinada pelo ministro responsável pela pasta. O quadro, portanto, é de intencional omissão do Poder Público em regulamentar a matéria.
Havendo prescrição médica para o uso do canabidiol, a ausência de segurança, de qualidade, de eficácia ou de equivalência técnica e terapêutica da substância preparada de forma artesanal - como se objeta em desfavor da pretendida concessão do writ - torna-se um risco assumido pelos próprios pacientes, dentro da autonomia de cada um deles para escolher o tratamento de saúde que lhes corresponda às expectativas de uma vida melhor e mais digna, o que afasta, portanto, a abordagem criminal da questão. São nesse sentido, aliás, as disposições contidas no art. 17 da RDC n. 335/2020 e no art. 18 da RDC n. 660/2022 da Anvisa, ambas responsáveis por definir "os critérios e os procedimentos para a importação de Produto derivado de Cannabis, por pessoa física, para uso próprio, mediante prescrição de profissional legalmente habilitado, para tratamento de saúde".
Em 2017, com o advento da Resolução n. 156 da Diretoria Colegiada da Anvisa, a Cannabis Sativa foi incluída na Lista de Denominações Comuns Brasileiras - DCB como planta medicinal, marco importante em território nacional quanto ao reconhecimento da sua comprovada capacidade terapêutica. Em dezembro de 2020, o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes - UNODC acolheu recomendações feitas pela Organização Mundial de Saúde sobre a reclassificação da Cannabis e decidiu pela retirada da planta e da sua resina do Anexo IV da Convenção Única de 1961 sobre Drogas Narcóticas, que lista as drogas consideradas como as mais perigosas, e a reinseriu na Lista 1, que inclui outros entorpecentes como a morfina - para a qual a OMS também recomenda controle -, mas admite que a substância tem menor potencial danoso.
Tanto o tipo penal do art. 28 quanto o do art. 33 se preocupam com a tutela da saúde, mas enquanto o § 1º do art. 28 trata do plantio para consumo pessoal ("Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica"), o § 1º, II, do art. 33 trata do plantio destinado à produção de drogas para entrega a terceiros.
A conduta para a qual os pacientes pleitearam e obtiveram salvo-conduto no Tribunal de origem não é penalmente típica, seja por não estar imbuída do necessário dolo de preparar substâncias entorpecentes com as plantas cultivadas (nem para consumo pessoal nem para entrega a terceiros), seja por não vulnerar, sequer de forma potencial, o bem jurídico tutelado pelas normas incriminadoras da Lei de Drogas (saúde pública).
O que pretendem os pacientes com o plantio da Cannabis não é a extração de droga (maconha) com o fim de entorpecimento - potencialmente causador de dependência - próprio ou alheio, mas, tão somente, a extração das substâncias com reconhecidas propriedades medicinais contidas na planta. Não há, portanto, vontade livre e consciente de praticar o fim previsto na norma penal, qual seja, a extração de droga, para entorpecimento pessoal ou de terceiros.
Outrossim, a hipótese também não se reveste de tipicidade penal - aqui em sua concepção material -, porque a conduta, ao invés de atentar contra o bem jurídico saúde pública, na verdade intenciona promovê-lo - e tem aptidão concreta para isso - a partir da extração de produtos medicamentosos; isto é, a ação praticada não representa nenhuma lesividade, nem mesmo potencial (perigo abstrato), ao bem jurídico pretensamente tutelado pelas normas penais contidas na Lei n. 11.343/2006.
O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada pela própria Constituição Federal à generalidade das pessoas.
No caso, uma vez que o uso pleiteado do óleo da Cannabis Sativa, mediante fabrico artesanal, se dará para fins exclusivamente terapêuticos, com base em receituário e laudo subscrito por profissional médico especializado, chancelado pela Anvisa na oportunidade em que autorizou os pacientes a importarem o medicamento feito à base de canabidiol - a revelar que reconheceu a necessidade que têm no seu uso -, não há dúvidas de que deve ser obstada a iminente repressão criminal sobre a conduta praticada pelos pacientes/recorridos.
Se o Direito Penal, por meio da "guerra às drogas", não mostrou, ao longo de décadas, quase nenhuma aptidão para resolver o problema relacionado ao uso abusivo de substâncias entorpecentes - e, com isso, cumprir a finalidade de tutela da saúde pública a que em tese se presta -, pelo menos que ele não atue como empecilho para a prática de condutas efetivamente capazes de promover esse bem jurídico fundamental à garantia de uma vida humana digna, como pretendem os recorridos com o plantio da Cannabis Sativa para fins exclusivamente medicinais.
Habeas Corpus
O Habeas Corpus é o remédio constitucional destinado à tutela do direito de locomoção (liberdade de ir e vir), que esteja indevidamente cerceado ou na iminência de estar indevidamente cerceado, por ilegalidade ou abuso de poder. Está positivado no inciso LXVIII do art. 5º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CFRB/88).
Possui uma natureza jurídica híbrida porque ao mesmo tempo em que é uma ação constitucional, no campo infraconstitucional, é uma ação penal não condenatória de rito especial. Por ser um procedimento especial, acaba sendo mais célere.
Existem outras modalidades de habeas corpus, mas, para fins didáticos, os mais comuns são o habeas corpus repressivo e o habeas corpus preventivo.O primeiro é utilizado para quando o direito de locomoção já foi cerceado, enquanto que o outro é impetrado diante da iminência do direito ser cerceado.
Importante ressaltar que o HC preventivo tem como pedido o salvo-conduto, em razão de não haver uma prisão em que se busca evitar a consumação da lesão à liberdade de locomoção. Já no caso do HC repressivo, o pedido é pelo alvará de soltura.
Caso Concreto
Trata-se do julgamento conjunto de dois casos envolvendo pedido de salvo-conduto para o plantio e transporte de Cannabis Sativa para tratamento de doenças. O objetivo do HC preventivo foi o de evitar que os pacientes sejam alvo de atos de investigação criminal pelos órgãos de persecução penal.
Cabimento do HC
Como em tese é possível que os pacientes tenham suas condutas enquadradas no art. 33, §1º, da Lei de Drogas, punível com pena privativa de liberdade, é indiscutível o cabimento de HC para os fins almejados: concessão de salvo-conduto para o plantio e transporte de Cannabis Sativa, da qual se pode extrair a substância necessária para a produção artesanal dos medicamentos prescritos para fins de tratamento de saúde.
Também existe o risco de que as autoridades policiais tentem qualificar a importação de sementes de Cannabis no tipo penal de contrabando (art. 334-A do CP), o que reforça o cabimento do HC para o fim pretendido, principalmente porque os pacientes receberem intimação da Polícia Federal para serem ouvidos em autos de inquérito policial.
O tratamento dos desdobramentos administrativos da questão por meio de ações pelo rito ordinário e outros instrumentos de natureza cível não exclui o cabimento de HC para impedir ou cessar eventual constrangimento à liberdade dos interessados.
Um dos argumentos levantados é o de que a defesa pretende, mediante o HC, tolher o poder de polícia das autoridades administrativas. Esse argumento não se sustenta pois, em primeiro lugar, a própria Anvisa afirmou que a regulação e a autorização do cultivo doméstico de plantas, quaisquer que sejam, não fazem parte do seu objetivo de atuação. Em segundo lugar, o objetivo da demanda não é o de impedir a atuação das autoridades administrativas, tampouco substituí-las em seu trabalho, mas apenas impedir que os pacientes sejam alvo de investigação criminal.
Histórico
A lei brasileira possibilita, há mais de 40 anos, a permissão, pelas autoridades competentes, de plantio, cultura e colheita de Cannabis exclusivamente para fins medicinais ou científicos (art. 2º, parágrafo único, da Lei 11.343/2006; art. 2º, §2º, da Lei 6.368/1976). Apesar disso, até hoje a matéria não tem regulamentação ou norma específica, evidenciando o descaso, ou mesmo o desprezo com a situação de inúmeras pessoas que poderiam se beneficiar com essa regulamentação.
Em 2019, instada a se manifestar sobre os requisitos técnicos e administrativos para o cultivo da Cannabis exclusivamente para fins medicinais ou científicos, a Diretoria Colegiada da Anvisa decidiu pelo arquivamento da proposta de resolução. Para o órgão, a autorização para cultivo de plantas que possam originar substâncias sujeitas a controle especial é da competência do Ministério da Saúde, que, por sua vez, indicou que não pretende regular a matéria, configurando intencional omissão do Poder Público.
Tipicidade da Conduta
A conduta dos pacientes não é penalmente típica, tanto por não haver dolo de preparar substâncias entorpecentes com as plantas cultivas (nem para consumo pessoal nem para entrega a terceiros), quanto por não violar o bem jurídico tutelado pela Lei de Drogas (saúde pública).
O objetivo do plantio não é a extração de droga (maconha) com o fim de entorpecimento próprio ou alheio, mas somente a extração da substâncias com reconhecidas propriedades medicinais contidas na planta. Portanto, não há vontade livre e consciente de praticar o fim previsto na norma penal, qual seja a extração de droga para entorpecimento pessoal ou de terceiros.
Ainda, também não há tipicidade penal no sentido material, uma vez que a conduta, ao invés de atentar contra o bem jurídico saúde pública, na verdade busca promovê-lo. A ação praticada não representa nenhuma lesividade, nem mesmo potencial ao bem jurídico tutelado.
O direito público subjetivo à saúde é uma prerrogativa jurídica indisponível assegurada pela própria Constituição Federal à todos.
Conclusão
Diante de tais premissas, o STJ decidiu que é cabível a concessão de salvo-conduto para o plantio e transporte de Cannabis Sativa para fins exclusivamente terapêuticos, com base em receituário e laudo subscrito por profissional médico especializado, e chancelado pela Anvisa.
No caso concreto, o uso do óleo da Cannabis Sativa, mediante fabrico artesanal, servirá somente para fins terapêuticos, tendo por base receituário e laudo assinado por médico especializado, chancelado pela Anvisa na oportunidade em que autorizou os pacientes a importarem o medicamento feito à base de canabidiol.