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Entendendo a Modulação de Efeitos

Publicado em 08/12/2025 por Marcelo Pinzo Lisboa da Cruz

Segundo a teoria clássica, uma lei inconstitucional "nasce morta" . Ela nasce com um vício de origem insanável: a incompatibilidade com a Constituição. Nessa perspectiva, uma sentença que reconhece a inconstitucionalidade não anularia a lei, mas apenas declararia que essa lei, pela sua nulidade, "nunca existiu". Como consequência, a decisão deveria desfazer todos os atos praticados sob a vigência da norma inválida, retornando as partes às situações anteriores à lei (o chamado status quo ante).

No entanto, a realidade social e a complexidade das relações jurídicas demonstraram que a lógica rígida de "válido/nulo" é insuficiente para lidar com a passagem do tempo. A aplicação absoluta da retroatividade, em muitos casos, causava danos sociais mais graves do que a própria manutenção temporária da norma inconstitucional. Imagine-se, por exemplo, uma lei que reestruturou carreiras de servidores públicos e que, dez anos depois, é declarada inconstitucional. A devolução de todos os salários recebidos geraria um caos social e a insolvência de milhares de famílias que agiram de boa-fé.

Foi nesse contexto de conflito entre o princípio da legalidade (que exige a anulação do ato ilegal) e o princípio da segurança jurídica (que protege a confiança e a estabilidade das relações) que surgiu a técnica da modulação de efeitos. Trata-se de um instrumento de "manipulação temporal" da eficácia da decisão, permitindo que o Tribunal, agindo com responsabilidade, mantém a vigência ou efeitos provisórios ou excepcionais de uma norma inconstitucional para evitar situações injustas.

Eficácia temporal: Ex Nunc e Ex Tunc

A eficácia temporal se refere ao momento que essa decisão começa a produzir efeitos. No Brasil, trabalhamos com três marcos principais.

Eficácia Ex Tunc (Retroatividade Plena)

Do latim, "desde então". A decisão retroage à data em que a norma impugnada entrou no ordenamento ou à data em que o fato ocorreu. Ou seja, seus efeitos começam a partir do momento em que a norma entrou no ordenamento jurídico. É a regra geral no controle de constitucionalidade brasileiro e nas declarações de nulidade civil. Se um contrato é nulo, ele é nulo desde a assinatura. A decisão judicial apaga os efeitos passados como se eles nunca tivessem existido juridicamente.

Eficácia Ex Nunc

 Do latim, "desde agora". A decisão não tem força retroativa. Ela vale do momento em que é proferida (ou do trânsito em julgado) para frente. O passado, mesmo que fundado em lei inconstitucional, é preservado ("convalida-se") em nome da boa-fé. É a forma mais comum de modulação. O tribunal diz: "A lei é inconstitucional, mas o que foi pago ou feito até ontem permanece válido".

Eficácia Pro Futuro

Excepcional em nosso ordenamento, o tribunal fixa uma data futura específica para o início da eficácia da decisão. É geralmente utilizada quando a anulação imediata criaria um vácuo normativo perigoso. O tribunal dá um "prazo" para o Legislativo editar uma nova lei. Durante esse prazo, a lei inconstitucional continua vigente e aplicável. Como exemplo, o STF declara inconstitucional a lei de repasse de verbas para municípios, mas determina que a decisão só valha a partir de 1º de janeiro do ano seguinte, para não quebrar o orçamento em curso.

Abrangência Subjetiva: Inter Partes e Erga omnes

A eficácia subjetiva se refere a quem essa decisão vai afetar, ou seja, os sujeitos que serão atingidos pelos efeitos dessa decisão

Eficácia Inter Partes:

A decisão vincula apenas os sujeitos da relação processual (Autor(es) e Réu(s)). É comum do controle difuso (incidental), onde o juiz decide um caso concreto, sem ser uma Ação Direta de Inconstitucionalidade ou semelhante. Outras pessoas na mesma situação não são beneficiadas automaticamente, exigindo que cada uma ajuíze sua própria ação.

Eficácia Erga Omnes:

 A decisão tem força de lei geral, atingindo a todos ("contra todos"), independentemente de terem participado do processo. É comum no controle concentrado (ADI, ADC, ADPF) no STF. Hoje, através da Repercussão Geral e dos Recursos Repetitivos, decisões que nasceram em processos subjetivos ganham projeção erga omnes prática, vinculando todo o Judiciário e a Administração Pública.

A Regulamentação da Modulação

Antes de 1999, o STF já flertava com a modulação, mas sem base legal explícita. Com a Lei nº 9.868/99, que regula o processo da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), veio o artigo 27:

Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.

O Código de Processo Civil de 2015 também representou uma revolução ao trazer a lógica do stare decisis (respeito aos precedentes) para o sistema processual. O artigo 927, estendeu a possibilidade de modulação para a alteração de jurisprudência:

Art. 927, CPC. 
§ 3º Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica. 
§ 4º A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia. 

A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) também foi alterada em 2018 para incluir o Art. 24, que blinda situações consolidadas contra mudanças de interpretação administrativa ou judicial:

Art. 24.  A revisão, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas.  

No julgamento do RE 638.115 (Questão dos Quintos), o STF estabeleceu uma distinção fundamental:

  1. Se há Declaração de Inconstitucionalidade de Lei: Aplica-se a regra do Art. 27 da Lei 9.868/99. Exigem-se 8 votos favoráveis à modulação de efeitos (ou 2/3 da Corte). A lógica é que afastar uma lei aprovada pelo Parlamento é um ato grave que exige consenso qualificado para ser mitigado.
  2. Se há apenas Alteração de Jurisprudência (sem inconstitucionalidade): Se o tribunal apenas muda a interpretação da lei infraconstitucional ou revisa uma súmula, aplica-se o Art. 927, § 3º do CPC. Nesse caso, basta a maioria absoluta de votos dos membros da corte (6 votos).

No texto constitucional, o controle difuso (feito num caso concreto, como um Recurso Extraordinário) só vale entre as partes. Para valer para todos, o Senado precisaria suspender a lei (Art. 52, X, CF).

Contudo, o Ministro Gilmar Mendes liderou uma corrente doutrinária e jurisprudencial defendendo a mutação constitucional desse dispositivo. Segundo essa tese, com a criação da Repercussão Geral, a decisão do Plenário do STF no controle difuso já teria, por si só, força expansiva. O papel do Senado, no Art. 52, X, deixaria de ser constitutivo (dar eficácia) e passaria a ser apenas de publicidade (divulgar a decisão).

Embora a tese da mutação tenha força, ela enfrenta resistência de ministros mais textualistas e da doutrina clássica, que veem nisso uma usurpação de competência legislativa. Na prática, porém, o CPC/2015 mitigou o problema ao dar efeito vinculante aos precedentes de Repercussão Geral, tornando a atuação do Senado praticamente uma formalidade.

Na perspectiva do STJ, há a utilização de uma técnica chamada Prospective Overruling (superação prospectiva). Quando há a modificação de um precedente, a Corte estabelece um novo, mas determina que o novo só se aplica a processos iniciados após a data da publicação do acórdão paradigma.

Exemplos de decisões com modulação de efeitos

O Caso Mira Estrela (RE 197.917)

Antes da Lei 9.868/99, o STF aplicou a modulação no caso do município de Mira Estrela (SP). Discutia-se o número de vereadores em relação à população. O STF declarou inconstitucional a composição da Câmara Municipal, que tinha vereadores além do permitido. Entretanto, se a decisão fosse ex tunc, todas as leis votadas por aqueles vereadores nos anos anteriores seriam nulas, paralisando a cidade. Por isso, o STF modulou para que a redução de vereadores valesse apenas para a próxima legislatura (efeito pro futuro), preservando os mandatos em curso e as leis aprovadas. Foi o leading case que provou a necessidade do instituto.

Tema 69 (STF)

O STF decidiu que o ICMS, por não ser faturamento da empresa, mas sim receita do Estado, não pode compor a base de cálculo do PIS e da COFINS. Entretanto, a União estimou um prejuízo de centenas de bilhões de reais caso tivesse que devolver os valores pagos de forma indevida de forma retroativa para todas as empresas do país. Em sede de Embargos de Declaração (2021), o STF fixou o marco temporal em 15 de março de 2017 (data do julgamento do mérito). Entretanto, a modulação não atingiu os contribuintes que já tinham ajuizado ações até 15/03/2017. Por isso, quem ajuizou ação em 14/03/2017 recuperou o imposto pago indevidamente nos 5 anos anteriores (efeito ex tunc subjetivo). Mas quem ajuizou em 16/03/2017 só recuperou valores a partir de 15/03/2017 (efeito ex nunc). Essa distinção gerou uma corrida ao judiciário e a posterior avalanche de Ações Rescisórias pela Fazenda Nacional contra quem obteve vitórias sem a modulação.

Tema 1079 (STJ)

Em 2024, o STJ julgou a tese sobre se as contribuições para o Sistema S (SESI, SENAI, etc.) estariam limitadas a uma base de cálculo de 20 salários mínimos. A decisão foi favorável ao Fisco (sem limite), contrariando jurisprudência anterior de TRFs que favorecia os contribuintes. Entretanto, o STJ aplicou uma modulação restritiva, definindo que a decisão só teria efeito prospectivo para empresas que, cumulativamente:

  • Tivessem ajuizado ação ou pedido administrativo até a data do início do julgamento; E
  • Tivessem obtido decisão favorável (liminar ou sentença) até aquela data.

A exigência de "decisão favorável" foi criticada pela doutrina, pois condiciona o direito do contribuinte à sorte de ter seu processo despachado rapidamente por um juiz, ferindo a isonomia entre quem ajuizou na mesma data.

Tema 1125 (STJ)

O STJ decidiu que o ICMS-Substituição Tributária (ICMS-ST) também deve ser excluído do PIS/COFINS.: Inicialmente, pensou-se em modular a partir da decisão do STJ (2023). Porém, para manter a coerência sistêmica, o STJ acolheu Embargos de Declaração para alinhar o marco com o do STF: 15 de março de 2017. Isso demonstra que a modulação não é isolada; ela dialoga entre as cortes para evitar que teses tributárias idênticas tenham tratamentos temporais díspares.

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