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STJ - Segunda Seção

REsp 1.863.973-SP

Recurso Especial

Repetitivo

Relator: Marco Aurélio Bellizze

Julgamento: 09/03/2022

Publicação: 14/03/2022

STJ - Segunda Seção

REsp 1.863.973-SP

Tese Jurídica Simplificada

Desde que o titular permita, é possível empréstimo consignado descontado de conta-corrente, ainda que essa conta seja utilizada para recebimento de salários. Não se aplica a limitação de 35%  prevista no § 1º do art. 1º da Lei n. 10.820/2003, que disciplina os descontos de parcelas sobre verbas remuneratórias.

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Nossos Comentários

Mútuo Bancário

O julgado traz apontamentos sobre o contrato de mútuo bancário. Este é o contrato pelo qual uma instituição financeira - a mutuante - transfere a propriedade de moeda ou de títulos fungíveis ao mutuário. Ele deverá restituir a mesma quantidade recebida com os acréscimos pactuados.

É possível que neste contrato, pelo princípio da liberdade contratual, o mutuário concorde que a instituição faça descontos mensais em sua conta corrente. A discussão do julgado está centrada sobre o limite destes descontos. 

Empréstimo consignado

A Lei n. 10.820/2003 dá providências sobre o desconto em folha de pagamento. Esta é uma modalidade de quitar o empréstimo consignado por abatimento direto do valor devido na folha de pagamento do trabalhador, ou seja, é descontado da sua remuneração, sem qualquer interferência do trabalhador ou possibilidade de revogação. Segundo o art.1º,§1º da referida lei, há um limite de 35% em descontos, afinal, não se pode onerar os ganhos do mutuário a ponto de afetar sua subsistência. 

Questiona-se: no caso de desconto autorizado em conta corrente, seria tal limite aplicável?

Julgado

A segunda seção do STJ, em julgamento do Recurso Especial, entendeu que a autorização do desconto na conta corrente em contrato de mútuo bancário, por contar com a possibilidade de revogação e autonomia privada, não está sujeita à limitação dos 35%. 

Entendeu que não cabe ao STJ a aplicação analógica da hipótese, pois não são situações semelhantes. Se aplicada a lei, haveria afronta ao Princípio de Separação dos Poderes, pois o judiciário estaria realizando função do legislativo. 

Considerou, portanto, não ser a maneira correta de combate ao "superendividamento". Este, inclusive, já está sendo tratado na legislação, a partir da Lei nº 14.181/2021. A utilização da analogia no caso em tela seria, mais uma vez, inibir a autonomia das partes e recair em um dirigismo contratual desnecessário. Lembrando que dirigismo contratual é a intervenção do Estado, em função dos fins sociais e das exigências do bem comum, para equilibrar o individualismo contratual.

Em resumo: são autorizados descontos de parcelas de empréstimos bancários comuns em conta-corrente havendo permissão do titular, ainda que utilizada para recebimento de salários. Não se aplica a limitação de 35%  prevista no § 1º do art. 1º da Lei n. 10.820/2003, que disciplina os descontos de parcelas sobre verbas remuneratórias.

Tese Jurídica Oficial

São lícitos os descontos de parcelas de empréstimos bancários comuns em conta-corrente, ainda que utilizada para recebimento de salários, desde que previamente autorizados pelo mutuário e enquanto esta autorização perdurar, não sendo aplicável, por analogia, a limitação prevista no § 1º do art. 1º da Lei n. 10.820/2003, que disciplina os empréstimos consignados em folha de pagamento.

Resumo Oficial

A controvérsia está em definir se, no bojo de contrato de mútuo bancário comum, em que há expressa autorização do mutuário para que o pagamento se dê por meio de descontos mensais em sua conta-corrente, é aplicável ou não, por analogia, a limitação de 35% (trinta e cinco por cento) prevista na Lei n. 10.820/2003, que disciplina o contrato de crédito consignado em folha de pagamento (chamado empréstimo consignado).

O empréstimo consignado apresenta-se como uma das modalidades de empréstimo com menores riscos de inadimplência para a instituição financeira mutuante, na medida em que o desconto das parcelas do mútuo dá-se diretamente na folha de pagamento do trabalhador regido pela CLT, do servidor público ou do segurado do Regime Geral de Previdência Social - RGPS, sem nenhuma ingerência por parte do mutuário/correntista, o que, por outro lado, em razão justamente da robustez dessa garantia, reverte em taxas de juros significativamente menores em seu favor, se comparado com outros empréstimos.

Uma vez ajustado o empréstimo consignado em folha de pagamento, não é dado ao mutuário, por expressa disposição legal, revogar a autorização concedida para que os descontos afetos ao mútuo ocorram diretamente em sua folha de pagamento, a fim de modificar a forma de pagamento ajustada.

Nessa modalidade de empréstimo, a parte da remuneração do trabalhador comprometida à quitação do empréstimo tomado não chega nem sequer a ingressar em sua conta-corrente, não tendo sobre ela nenhuma disposição. Sob o influxo da autonomia da vontade, ao contratar o empréstimo consignado, o mutuário não possui nenhum instrumento hábil para impedir a dedução da parcela do empréstimo a ser descontada diretamente de sua remuneração, em procedimento que envolve apenas a fonte pagadora e a instituição financeira.

É justamente em virtude do modo como o empréstimo consignado é operacionalizado que a lei estabeleceu um limite, um percentual sobre o qual o desconto consignado em folha não pode exceder. Revela-se claro o escopo da lei de, com tal providência, impedir que o tomador de empréstimo, que pretenda ter acesso a um crédito relativamente mais barato na modalidade consignado, acabe por comprometer sua remuneração como um todo, não tendo sobre ela nenhum acesso e disposição, a inviabilizar, por consequência, sua subsistência e de sua família.

Diversamente, nas demais espécies de mútuo bancário, o estabelecimento (eventual) de cláusula que autoriza o desconto de prestações em conta-corrente, como forma de pagamento, consubstancia uma faculdade dada às partes contratantes, como expressão de sua vontade, destinada a facilitar a operacionalização do empréstimo tomado, sendo, pois, passível de revogação a qualquer tempo pelo mutuário. Nesses empréstimos, o desconto automático que incide sobre numerário existente em conta-corrente decorre da própria obrigação assumida pela instituição financeira no bojo do contrato de conta-corrente de administração de caixa, procedendo, sob as ordens do correntista, aos pagamentos de débitos por ele determinados, desde que verificada a provisão de fundos a esse propósito.

Registre-se, inclusive, não se afigurar possível - consideradas as características intrínsecas do contrato de conta-corrente - à instituição financeira, no desempenho de sua obrigação contratual de administrador de caixa, individualizar a origem dos inúmeros lançamentos que ingressam na conta-corrente e, uma vez ali integrado, apartá-los, para então sopesar a conveniência de se proceder ou não a determinado pagamento, de antemão ordenado pelo correntista.

Essa forma de pagamento não consubstancia indevida retenção de patrimônio alheio, na medida em que o desconto é precedido de expressa autorização do titular da conta-corrente, como manifestação de sua vontade, por ocasião da celebração do contrato de mútuo. Tampouco é possível equiparar o desconto em conta-corrente a uma dita constrição de salários, realizada por instituição financeira que, por evidente, não ostenta poder de império para tanto. Afinal, diante das características do contrato de conta-corrente, o desconto, devidamente avençado e autorizado pelo mutuário, não incide, propriamente, sobre a remuneração ali creditada, mas sim sobre o numerário existente, sobre o qual não se tece nenhuma individualização ou divisão.

Ressai de todo evidenciado, assim, que o mutuário tem em seu poder muitos mecanismos para evitar que a instituição financeira realize os descontos contratados, possuindo livre acesso e disposição sobre todo o numerário constante de sua conta-corrente.

Não se encontra presente nos empréstimos comuns, com desconto em conta-corrente, o fator de discriminação que justifica, no empréstimo consignado em folha de pagamento, a limitação do desconto na margem consignável estabelecida na lei de regência, o que impossibilita a utilização da analogia, com a transposição de seus regramentos àqueles. Refoge, pois, da atribuição jurisdicional, com indevida afronta ao Princípio da Separação do Poderes, promover a aplicação analógica de lei à hipótese que não guarda nenhuma semelhança com a relação contratual legalmente disciplinada.

Não se pode conceber, sob qualquer ângulo que se analise a questão, que a estipulação contratual de desconto em conta-corrente, como forma de pagamento em empréstimos bancários comuns, a atender aos interesses e à conveniência das partes contratantes, sob o signo da autonomia da vontade e em absoluta consonância com as diretrizes regulamentares expedidas pelo Conselho Monetário Nacional, possa, ao mesmo tempo, vilipendiar direito do titular da conta-corrente, o qual detém a faculdade de revogar o ajuste ao seu alvedrio, assumindo, naturalmente, as consequências contratuais de sua opção.

A pretendida limitação dos descontos em conta-corrente, por aplicação analógica da Lei n. 10.820/2003, tampouco se revestiria de instrumento idôneo a combater o endividamento exacerbado, com vistas à preservação do mínimo existencial do mutuário.

Essa pretensão, além de subverter todo o sistema legal das obrigações - afinal, tal providência, a um só tempo, teria o condão de modificar os termos ajustados, impondo-se ao credor o recebimento de prestação diversa, em prazo distinto daquele efetivamente contratado, com indevido afastamento dos efeitos da mora, de modo a eternizar o cumprimento da obrigação, num descabido dirigismo contratual -, não se mostraria eficaz, sob o prisma geral da economia, nem sequer sob o enfoque individual do mutuário, ao controle do superendividamento.

Tal proceder, sem nenhum respaldo legal, importaria numa infindável amortização negativa do débito, com o aumento mensal e exponencial do saldo devedor, sem que haja a devida conscientização do devedor a respeito do dito "crédito responsável", o qual, sob a vertente do mutuário, consiste na não assunção de compromisso acima de sua capacidade financeira, sem que haja o comprometimento de seu mínimo existencial. Além disso, a generalização da medida - sem conferir ao credor a possibilidade de renegociar o débito, encontrando-se ausente uma política pública séria de "crédito responsável", em que as instituições financeiras, por outro lado, também não estimulem o endividamento imprudente - redundaria na restrição e no encarecimento do crédito, como efeito colateral.

Por fim, a prevenção e o combate ao superendividamento, com vistas à preservação do mínimo existencial do mutuário, não se dão por meio de uma indevida intervenção judicial nos contratos, em substituição ao legislador. A esse relevante propósito, sobreveio - na seara adequada, portanto - a Lei n. 14.181/2021, que alterou disposições do Código de Defesa do Consumidor, para "aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento.

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