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STJ - Quinta Turma

RHC 150.707-PE

Recurso Ordinário em Habeas Corpus

Relator: João Otávio de Noronha

Julgamento: 15/02/2022

Publicação: 21/02/2022

STJ - Quinta Turma

RHC 150.707-PE

Tese Jurídica Simplificada

Em casos que envolvem complexidade dos fatos e da adequação típica das condutas a esses fatos, se o processo ainda não chegou na fase probatória, não cabe trancamento da ação penal.

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Contexto

Trata-se do caso de Miguel, criança que morreu ao cair do 9º de um prédio, em Recife/PE. Sua mãe trabalhava como empregada doméstica na casa de Sarí Corte Real. A empregada, ao sair para passear com o cachorro da patroa, deixou a criança aos cuidados de Sarí. Segundo o site do G1, Miguel teria entrado no elevador pelo menos cinco vezes, sendo que, na última, Sarí acionou a tecla do elevador que dava acesso à cobertura. O elevador parou no nono andar. Após escalar uma parede, Miguel subiu em um condensador de ar e caiu de uma altura de 35 metros.

O Ministério Público ofereceu denúncia em face de Sarí sob a acusação da prática de crime de abandono de incapaz com resultado morte, disposto no art. 133, §2º, do Código Penal:

Art. 133 - Abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono:

[...]

§ 2º - Se resulta a morte:

Pena - reclusão, de quatro a doze anos.

Trata-se de crime próprio, no qual o sujeito ativo deve ter plena consciência de sua posição de garantidor, pois somente pratica aquele que tem uma relação especial com a vítima, ou seja, aquele a quem é imposto dever de cuidado, guarda, vigilância ou autoridade.

De acordo com o Parquet, Sarí teria assumido a posição de garante (art. 13, §2º, "b", CP) ao aceitar o dever de cuidar da criança enquanto a mãe estava fora. Além disso, segundo o Ministério Público, o dever de proteção das crianças e dos adolescentes, disposto na Constituição e no Estatuto da Criança e do Adolescente, reforça a posição de garante da ré.

Segundo a denúncia, Sarí estava momentaneamente responsável pela vigilância de Miguel, permitindo-lhe utilizar o elevador sozinho, gerando um perigo concreto de lesão, que se concretizou com a queda do nono andar. Assim, embora não desejado, mas sendo previsível o resultado "morte", estaria comprovado o nexo de causalidade e a responsabilidade penal da recorrente.

Com o recebimento da denúncia, a defesa impetrou habeas corpus pedindo o trancamento da ação penal.

Lembrando que os tribunais superiores admitem o trancamento da ação penal por meio de HC como medida excepcional, desde que demonstradas:

  • a atipicidade da conduta;
  • a falta de provas de materialidade ou indícios suficientes de autoria; ou
  • quando presente alguma causa extintiva de punibilidade

A ordem foi indeferida pelo TJ/PE, motivo pelo qual a defesa interpôs recurso ordinário ao STJ sob os seguintes argumentos: (i) comprometimento do matricial dever de assistência; (ii) improbabilidade do perigo decorrente da omissão; e (iii) imprevisibilidade objetiva do resultado culposo.

Em outras palavras, a defesa sustentou a atipicidade da conduta, uma vez que os fatos descritos na denúncia não caracterizariam o crime de abandono de incapaz, crime de perigo que depende de juízo de probabilidade; bem como porque o resultado "morte" não era uma consequência previsível.

Cabe trancamento da ação penal?

O STJ negou o pedido de trancamento da ação penal nesse caso, pois não se vislumbra a atipicidade da conduta imputada à paciente. Vejamos o entendimento da Corte.

(i) comprometimento do dever de assistência

Segundo a defesa, houve comprometimento do dever de assistência em virtude do comportamento da própria vítima. Para discutir a responsabilização de Sarí, é necessário compreender a estrutura normativa dos tipos penais discutidos.

A posição de garante, ao qual é imposto o dever de impedir o resultado, tem suas hipóteses elencadas nas alíneas do art. 13, §2º, do CP:

Art. 13 - O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido. 

§ 2º - A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem:(Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984).

a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984.

b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado. (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984).

O dever geral de proteção previsto no art. 227 da CF e reforçado no art. 70 do ECA se traduz numa norma de conteúdo programático, e, portanto, não se enquadra na alínea "a" do §2º.

Esse dever geral não é compatível com a relação especial prevista no delito de abandono de incapaz, que exige um dever de assistência decorrente de cuidado, guarda, vigilância ou autoridade entre os sujeitos ativo e passivo. Na verdade, esses dispositivos representam um objetivo do constituinte, impondo principalmente ao Poder Público uma atuação orientada com a finalidade de proteger os interesses das crianças e adolescentes.

Obviamente esse dever também é estendido à sociedade, mas não na acepção especial como prevista no delito em questão. Trata-se de um dever genérico, que pode se amoldar em outra infração penal, como na omissão de socorro, por exemplo.

No caso, o dever de assistência, que integra o tipo penal, seria decorrência da assunção da posição de garante, segundo os termos da alínea "b" do §2º do art. 13. Ou seja, no caso concreto, a ré assumiu o compromisso de cuidar e proteger a criança.

A assunção da posição de garante precisa ser expressa, verbalmente aferível, ou demonstrada pela exteriorização do comportamento da pessoa que efetivamente assume a responsabilidade de resguardar o incapaz dos prováveis perigos e lesões a que estará submetido se estiver sozinho.

No caso, a assunção desse encargo foi voluntária e consciente, gerando uma expectativa de que a garantidora prestaria efetiva assistência à criança. 

Contudo, isso não significa que a ré deve responder por qualquer resultado relacionado à vítima, pois existem limites definidos pelo contexto do caso concreto.

(ii) improbabilidade do perigo decorrente da omissão e (iii) imprevisibilidade objetiva do resultado culposo.

O aspecto mais relevante nesse caso é a tenra idade da criança (5 anos ao tempo do fato), sendo razoável deduzir que, nas circunstâncias reveladas pela investigação, se a criança conseguiu escapar dos cuidados da garante, a omissão penalmente relevante já estaria configurada por si só, porque a paciente, presumivelmente, não agiu com a necessária cautela.

Apesar de a defesa ter argumentado ser inevitável a fuga e entrada da criança no elevador, isso deve ser objeto de cautelosa, sensível e detalhada instrução probatória, pois o delito omissivo não restará configurado se ficar demonstrado que o garante não tinha condições de agir para impedir o resultado.

Ademais, com base nos fatos descritos na denúncia, teoricamente, é possível identificar na denúncia as situações ensejadoras do perigo concreto:

  1. a tenra idade da vítima (absolutamente incapaz de se defender de quaisquer situações de perigo que se apresentassem à sua frente);
  2. a falta de familiaridade com o local;
  3. a incapacidade de determinar o correto curso do elevador, considerando que acionou diversos botões aleatoriamente, exceto o que o levaria ao encontro de sua mãe, no térreo.

O processo em questão ainda não adentrou na fase de instrução probatória.

Em resumo, em casos que envolvem complexidade dos fatos e da adequação típica das condutas a esses fatos, se o processo ainda não chegou na fase probatória, não cabe trancamento da ação penal.

Tese Jurídica Oficial

Não há falar em trancamento da ação penal quando a complexidade dos fatos e da adequação típica das condutas a eles, na conformidade da plausível articulação de juízos normativos preliminares da denúncia, implicam a conveniência da instrução probatória.

Resumo Oficial

Trata-se de pedido de trancamento de ação penal sob fundamento do comprometimento do matricial dever de assistência, a improbabilidade do perigo decorrente da omissão e a imprevisibilidade objetiva do resultado culposo.

Para análise da isenção da responsabilidade penal imputando o comprometimento do dever de assistência em virtude do comportamento da própria vítima deve-se compreender a complexa estrutura normativa desses tipos penais omissivos próprios e impróprios.

Sucintamente, a posição de garante, ao qual é imposto o dever de impedir o resultado, tem suas hipóteses descritas nas alíneas do art. 13, § 2º, do Código Penal.

Evidentemente, o dever geral de proteção previsto no artigo 227 da Constituição Federal e reforçado no artigo 70 da Lei n. 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA) se traduz numa norma de conteúdo programático e não se amolda à alínea a do art. 13, § 2º, do Código Penal.

Esse dever geral não é compatível com a especial relação disposta no delito de abandono de incapaz, que exige um dever de assistência decorrente de cuidado, guarda, vigilância ou autoridade entre os sujeitos ativo e passivo.

Ao reverso, esses dispositivos representam mais um objetivo mirado pelo constituinte, que impõem principalmente ao Poder Público uma atuação orientada com a finalidade de proteger os interesses das crianças e adolescentes, em virtude da sua peculiar condição de pessoas em desenvolvimento.

Obviamente, esse dever de alguma forma também é atribuído à sociedade, porém, não na acepção especial como a prevista na elementar do delito em questão, mas como um dever genérico, que pode se amoldar em outra infração penal, como na omissão de socorro, por exemplo.

No presente caso, o dever de assistência, que integra o tipo, adviria da assunção fática da posição de garante, nos precisos termos da alínea b do dispositivo supracitado.

A esse respeito, não obstante a adoção da teoria formal pelo Código Penal - prevista no art. 13, § 2º, do CP -, a doutrina cuidou de reavaliar o instituto através de critérios materiais, pois, aquelas não atendem suficientemente ao princípio da legalidade, nem são capazes de retratar todas as hipóteses geradoras de uma posição de garantidor. Dessa forma, inserida no contexto de especial posição de defesa de certos bens jurídicos, assentou-se que dela faz parte a "assunção, por parte de alguém, de uma função protetiva unilateral ou bilateral, que independentemente de um contrato formal, conduza a que se lhe confie a proteção do bem jurídico".

Relativamente a essa hipótese de assunção do encargo, reputa-se indispensável, evidentemente, a voluntariedade e a consciência do dever assumido. Veja-se, também, que da assunção decorre uma expectativa, uma confiança de que haverá por parte do garantidor a efetiva assistência ao incapaz.

Efetivamente, a assunção fática deve ser expressa, verbalmente aferível, ou demonstrada pela exteriorização do comportamento da pessoa que efetivamente assume a responsabilidade de resguardar o incapaz dos prováveis perigos e lesões a que estará submetido se sozinho estiver.

Indubitável que a assunção da posição de garantidor não será irrestrita; terá seus limites definidos pelo contexto de proteção aos quais aderiu a pessoa que se dispôs a servir como responsável pela elisão do risco/resultado.

Na macro perspectiva do mandamus, o aspecto que desponta como mais relevante é a tenra idade da criança (cinco anos ao tempo do fato), de forma a ser razoável deduzir que, nas circunstâncias reveladas pela investigação, se o infante logrou se subtrair da assistência, a omissão penalmente relevante já estaria configurada de per si porque a paciente, presumivelmente, não agira com a necessária cautela e com a abnegação que lhe era devida.

De toda sorte, em casos desse peculiar jaez (criança de pouca idade), se e enquanto o cuidado, guarda, vigilância ou autoridade estiverem comprometidos pela fuga inevitável do incapaz, não haverá se atribuir ao garantidor os riscos do período em que o sujeito passivo permaneceu desassistido.

No entanto, as nuances que definirão esse lapso temporal atípico deverão ser objeto de cautelosa, sensível e detalhada instrução probatória, pois não restará configurado o delito omissivo quando demonstrado que a pessoa à qual se atribui a obrigação de evitar o resultado não tinha condições de agir para impedi-lo.

Portanto, da análise perfunctória consentânea à via estreita do habeas corpus, não se vislumbra inequívoca atipicidade da conduta irrogada à paciente.

Ademais, com esteio nos fatos descritos na denúncia, teoricamente, é possível identificar na exordial acusatória as situações ensejadoras do perigo concreto: 1) a tenra idade da vítima (absolutamente incapaz de defender-se de quaisquer situações de perigo que se apresentassem à sua frente); 2) a falta de familiaridade com o local; 3) a incapacidade de determinar o correto curso do elevador, tendo em vista que acionou diversos botões aleatoriamente, exceto o que o levaria ao encontro de sua genitora, no pavimento térreo.

Com efeito, a complexidade dos fatos e da adequação típica das condutas a eles, na conformidade da plausível articulação de juízos normativos preliminares da denúncia implicam a conveniência da instrução probatória.

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